sábado, 7 de setembro de 2019

FEIRA DO DESESPERO


Luanda esteve em polvorosa neste fim de semana, pelo menos na sexta-feira.
Alguém talvez para amenizar os ânimos dos jovens, que decidiram apresentar sua justa reclamação na última semana, à promessa dos 500.000 empregos feitos durante a campanha eleitoral, por burrice, ou pura ingenuidade, decidiu fazer as coisas ao estilo antigo. Usando a táctica das manifestações-resposta.
Para quem não se lembra, se algum grupo decidisse reclamar, logo havia um monte de bajús que montavam quase do dia para a noite uma carreata de apoio, uma espécie de acção contra-revolucionária (claro, menos sofisticada e mais burra).
Desta vez a resposta à esta reclamação tão séria e urgente, veio na forma de uma anedota chamada “Feira do emprego...”. Uma ideia burra e prometida ao fracasso desde o início, porque para começar, emprego gera-se com projecto estratégico e planeamento prévios.
Esta feira não passa de um delírio irresponsável, num país em que infelizmente, mais de 50% dos jovens estão desempregados, só por este dado, seria de esperar que o local ficasse inundado de jovens em busca de trabalho.
Outra face importante desta irresponsabilidade é a confusão, sobre qual é de facto a competência do Instituto Angolano da Juventude, pois a criação de políticas de emprego já é de responsabilidade do MAPTSS, que por meio da Direcção Nacional do Trabalho e Formação Profissional, é responsável pela formulação e asseguramento da aplicação das políticas e medidas nos domínios de trabalho, emprego e formação profissional.
Criar empregos é complexo e exige expertise e claro, muita responsabilidade, aliás é preciso perguntar aos fulanos do Instituto Angolano da Juventude, que megalomania é essa que os fez pensar que com um arranjo tão superficial quanto este, poderiam de facto resolver o problema do desemprego em Luanda?
Para quem ousar dizer, “valeu pela iniciativa”, gostaria de poupar-lhe da vergonha lembrando que o governo a que pertence o Instituto Angolano da Juventude é o mesmo de que faz parte o MAPTSS.
Um parêntesis importante também deve ser aberto para alertar os nossos deputados que ao fugirem da feira, só demonstraram o desprezo que têm deste povo de que tanto falam nos seus inflamados discursos.
Se essa feira serviu para alguma coisa, de facto, foi dar provas da situação de desespero em que se encontra a nossa juventude, que infelizmente, mesmo sendo a geração mais qualificada da nossa recente história, (técnicos superiores) é também aquela que tem as menores oportunidades de trabalho e emprego.


quinta-feira, 8 de agosto de 2019

O ponto "G" do IVA

Tenho a impressão de que na maioria das discussões públicas sobre grandes questões da vida angolana, há uma tendência para desviar a atenção daquilo que é realmente importante sendo redireccionadas para debates periféricos.
A estratégia seguida parece ser a seguinte: surge um grande problema social, econômico ou político e a discussão é automaticamente encaminhada para uma direcção que por mais relevante que à princípio possa parecer é na verdade uma distração, que pode aparecer na forma de uma nova futilidade social (tipo, as dívidas de um antigo jogador, a jarda infeccionada da sicrana, a sensação do novo casal de famosos, etc.), ou de um debate recheado de superficialidade.
Seria, portanto necessário, nos aventurarmos a fazer uma análise mais cuidada, para descobrir que fomos ludibriados e neste caso, quando acordamos para a discussão que de facto vale a pena ter, já é tarde. Leis foram aprovadas à socapa, projectos que já se sabia que não levantariam vôo passaram sem causarem a justa e devida indignação e por aí vai.
Minha suspeita inclusive é de que esteja a acontecer exactamente a mesma coisa em relação ao IVA. Se propositadamente ou não, a verdade é que nos últimos meses iniciou-se uma frenética discutição (como dizemos na banda) sobre a implementação do IVA. Mas a discussão parece circunscrita à apenas uma palavra, custo (custo para comerciantes, custo para empresas grandes, médias ou pequenas, custo para consumidores, etc) que apesar parecer suficientemente abrangente, não passa de um subterfúgio para afastar-nos daquilo que interessa de facto discutir.
Nessa conversa (que de conversa não tem nada) saltamos etapas. Por exemplo, era importante começar por discutirmos o que vem a ser isso, onde se aplica, qual a necessidade, quais as consequências, mas além dessas preocupações, o problema do IVA transcende, ou deveria transcender a discussão do custo, e para entendermos porquê, precisamos de começar por fazer as perguntas certas.
Antes de tudo é bom entendermos que tratando-se de imposto, a sua centralidade não termina da cobrança, mas no uso. Como qualquer imposto, é fundamental que haja transparência na forma como o mesmo será usado, justamente para se aferir a pertinência do mesmo.
A lógica da existência de um imposto está em pagar uma taxa ao Estado com vista a melhoria de determinado serviço público (educação, saúde, transporte, assistência social, providência social, investigação científica, etc.).
O que temos visto em Angola nos últimos anos, é a despeito do pagamento de diversos impostos e taxas (desde o IRT e INSS ao imposto de consumo) há uma crescente degradação de tudo o que é público e diga-se, sem oferta que se preze no sector privado. Por esta razão, há questões verdadeiramente importantes a colocar, já que burlamos a primeira etapa:
1.     Para onde vai o IVA, educação, saúde, transporte público, pesquisa?
2.     Que percentagem da arrecadação deste imposto será aplicada em cada um destes sectores?
3.     Como será a redistribuição do IVA ao nível local (províncias, municípios, sectores, etc)?
4.     Em suma, de que forma concreta o cidadão beneficiará com a implementação deste imposto?
É claro que podíamos continuar formulando questões relacionadas às já colocadas, mas a chamada de atenção é que se os impostos são cobrados para melhorar serviços públicos, então precisamos que seja dito de forma transparente qual será o destino do IVA. Há exemplos nesta direcção que podemos aproveitar de experiências internacionais.
No Brasil, por exemplo, segue-se a regra de utilizar parte do valor arrecadado pelo ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) investindo em  políticas públicas sociais para educação, saúde e segurança. Deste modo áreas como: cultura e desporto, energia e inclusão social beneficiam directamente e de forma mais transparente possível do imposto cobrado pelo estado. Usando este imposto o Governo do Estado de São Paulo, criou a Lei de Incentivo ao desporto, o ProAC ICMS de incentivo à cultura (cinema, teatro, dança e etc.), e  pessoas com deficiência beneficiam-se da compra de veículos adaptados às suas necessidades. 
Como estamos acostumados, os projectos governamentais são impostos arbitrariamente, mas desta vez, talvez devêssemos mobilizar-nos para obrigar o Governo e quem sabe os deputados a discutir não a implementação ou não IVA, que essa me parece uma batalha perdida, mas como o mesmo beneficiará os contribuintes, para o melhoramento de que serviços está destinado, pois este parece a meu ver, o ponto “G” do IVA

domingo, 20 de janeiro de 2019

Subida do preço do passaporte é um falso problema


A subida do preço do passaporte angolano é um falso problema, na verdade acho que esta notícia deveria ser recebida com indiferença pelos angolanos. O facto de ter feito tanta gente levantar-se para reclamar, para mim é simples expressão da ignorância de uma pretensa pequena burguesia sobre a real situação de milhares de angolanos para quem o passaporte não significa absolutamente nada, afinal, o que é o passaporte diante dos seguintes factos:
Apenas uma em cada 4 crianças com menos de 5 anos de idade nascidas em Angola possui registo de nascimento, aliás, é este o fundamento da campanha paternidade responsável;
Apenas na capital do país o ensino público de base cobre apenas 59% do necessário;
A malária ainda é a campeã entre as doenças que mais matam angolanos com 56% das mortes nos nossos hospitais;
Entre as crianças 29% sofrem de má-nutrição;
Cerca de 200 mil angolanos não consegue ter um bilhete de identidade, este sim, um documento importante para todos (sem excepções).
Por tudo isso, o passaporte não é prioridade, não diante de dramas como falta de comida à mesa, Desemprego perto dos 46%, saúde pública como miragem, habitação decente só para os especiais e educação que exclui descaradamente dois milhões de crianças do sistema de ensino.
Nesse contexto, a aspiração à uma viagem internacional (que é o que pressupõe o tratamento de um passaporte) é nada mais do que um delírio de pessoas que se supõem enganosamente classe média, por ignorância ou vergonha de assumir o que realmente são: pobres assalariados.
Reclamar sobre a subida do preço do passaporte na conjuntura actual de Angola e assumir discursos nos quais se sustenta que isso seria dificultar a vida dos mais pobres, apenas reflecte como nos anestesiamos enquanto sociedade para não sermos capazes de nos mostrar minimamente empáticos para a situação de tantos outros compatriotas para que o passaporte não é algo que faça parte da sua realidade.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Jardadas: as Sartjie Baartman de hoje?


Sartjie Baartman também conhecida como Vênus Hotentote foi uma mulher tornada escrava na África do Sul pela família Baartman. Em 1810 foi levada para a Europa pelo irmão do seu escravocrata com a promessa de fama (isso deve parecer familiar) e dinheiro, que seriam supostamente ganhos pela sua exposição.

E o espetáculo? Seu corpo.

Sartjie foi descrita pelos europeus como uma mulher de “nádegas enormes e elevadas, como traço étnico, gordura sobre as nádegas em vez da barriga, lábios vaginais muito desenvolvidos e chamados por isso de cortina ou bandeja da vergonha [muito significativo]”.


Sartjie foi exposta em Londres onde aparecia em shows, acorrentada e nua, apenas com a genitália coberta. Era obrigada a caminhar de quatro para ressaltar a sua bunda e de alguma forma tornar mais evidente sua suposta natureza animalesca.
A plateia podia apalpá-la fazendo um pagamento extra.
O show levantou algumas questões sobre se estava a ser explorada, mas ela disse aos juízes que fazia aquilo de livre vontade, por isso o tribunal arquivou o caso apesar das inúmeras contradicções.
Em 1814 ela foi vendida à um Francês domador de animais que a obrigou a exibir-se completamente nua mostrando até a genitália, ela também passou a ser usada em festas para a diversão dos convivas bêbados.
Seu corpo foi usado por todos, desde bêbedos, à pintores e cientistas interessados em estudá-la. Sartjie terminou seus dias, como prostituta e alcoólatra. Mesmo na morte não teve descanso, seu corpo foi dissecado publicamente e sua vagina conservada em formol de 1815 à 2002, quando Sartjie foi finalmente devolvida à África do Sul para ser enterrada.
O corpo de Sartjie passou a ser usado como padrão para todas as mulheres africanas, ou seja, depois dela os cientistas passaram a defender que as mulheres africanas tinham nádegas grandes, eram sexualmente selvagens (daí também vem a ideia de um desejo insaciável das mulheres negras), além de outros vitupérios.

Mas o que a história de Sartjie tem a ver com as jardadas?

De um lado, as jardadas reproduzem (conscientemente ou não) um estereótipo que foi criado na época de Sartjie Baartman para estabelecer a fronteira entre os padrões estéticos africanos e ocidentais e que não dizem respeito apenas ao tamanho da bunda, mas às expectativas sexuais que se reproduzem em relação às africanas de forma geral como sexualmente quentes e/ou insaciáveis.
De outro lado, alimentam a ilusão (enganadas tal como foi Sartjie) de que suas escolhas são de facto autônomas, não percebendo a perniciosidade desta suposta autonomia, ou seja, que estando elas inseridas numa sociedade que transforma as relações sociais em mercadoria, as suas decisões serão (salvo excepções) orientadas no sentido de tornar seus corpos lucrativos para a indústria em termos de satisfação do desejo masculino e na manutenção de certo padrão estético. Ou seja, a sua expectativa de aceitação passa não por poderem ser vistas como são (mulheres reais), mas pela ilusão do que se-lhes vende como o que podem ser (poderosas, que leia-se aqui: Jardadas). Fazem-se aceites oferecendo-se como mercadoria e neste caso mercadoria do desejo masculino.
Para as Sartjie Baartman de hoje, a vida não é nem um pouco mais fácil do que era no passado, pelo contrário, a falta de aprofundamento na compreensão da cadeia complexa do momento actual, que interliga capitalismo-patriarcado-neoliberalismo dificulta a uns e outros compreender seu papel na manutenção das formas de objectificação das mulheres de forma geral e das jardadas particularmente.
O facto de existirem mulheres (caso das artistas e figuras públicas) tendo consciência do fenômeno da objectificação e que tentam capitalizar por isso seu corpo de modo consciente, não significa necessariamente que elas não sejam também vítimas de um espetáculo circense bizarro e atroz que as suga para depois as descartar (por velhice, porque ficaram críticas demais, porque ficaram despudoradas demais, etc.).
As jardadas são as Sartjie de hoje, porque caíram nas armadilhas da promessa de fama e riqueza a troco da exposição de uma bunda e de tudo o que ela simbolicamente representa numa sociedade patriarcal e capitalista.
Post script: O filme Vênus hotentote é um bom lembrete das atrocidades sofridas por Sartjie.

Imagens retiradas de: https://www.ivoox.com/pt/escalofriante-5x02-sarah-baartman-la-sordida-audios-mp3_rf_14208642_1.html e
https://www.google.com/url?sa=i&source=images&cd=&ved=2ahUKEwjG17674_ffAhVDXxoKHdSyDeIQjRx6BAgBEAU&url=https%3A%2F%2Fwww.revistaplaneta.com.br%2Fsaartjie-a-venus-hotentote%2F&psig=AOvVaw1xnmVLk0-dw4Enf2lG9bAB&ust=1547915898508753

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Paternidade responsável vs Maternidade compulsória

     
A campanha iniciada recentemente como resultado de articulação entre UNICEF e Ministério da Justiça, sobre paternidade responsável é uma iniciativa interessante, pois torna pública a discussão sobre o lugar da paternidade, infelizmente ainda padece de um problema de estreitamento de responsabilidades, ao apresentar como exemplo essencial de paternidade responsável apenas o registo, que é na verdade uma fracção do que seria de facto a paternidade responsável.

      As três peças que tive a oportunidade de assistir (o polícia, o taxista e o Anselmo Ralph) dão a impressão de condicionar um direito fundamental da criança (o direito ao reconhecimento pelo Estado - cidadania) à boa vontade do pai ao deixar de referir que o registo é um direito e como tal deve ser garantido pelo estado independente da vontade do pai.
      Contudo, para não ser totalmente injusto é verdade que as imagens apresentadas sugerem outras formas de exercício da paternidade, mas ainda assim de forma pobre e sem muito aprofundamento.

         Para nós homens a tarefa de ser pai sempre foi facilitada, começando pelo facto de que enquanto para as mulheres o exercício da maternidade é sempre compulsório, para os homens, a paternidade é sempre voluntária. Nós podemos escolher ser pais no momento que mais nos convém e isso diz respeito até a questão básica do registo. Há contudo outras formas de adiar a paternidade, como quando a mãe é a única que sabe onde estão as roupas da criança, os cremes que ela deve usar, ou mesmo quando a mãe domina todas as restrições dos filhos e o pai se contenta em delegar essa tão importante responsabilidade para a mãe, ou ainda,  quando mesmo coabitando sobre o mesmo tecto o pai limita-se a ser apenas o provedor financeiro, nunca sabe quais são as manias e virtudes da criança, que ginásticas se fazem para ela comer, que desenhos animados ela mais gosta de assistir, como gosta que se amarrem os atadores do sapato, fugindo nos momentos de crises e birras da criança e só aparecendo quando ela está quieta, limpa e bem comportada.
      O que não significa que o registo não seja importante, até porque o censo de 2014 do  Instituto Nacional de Estatística apurou que apenas 1 em cada 4 crianças com menos de 5 anos de idade estão registadas.

          Mas porquê isso acontece?

      Em muitos casos simplesmente porque os pais se recusam a fazê-lo. Neste sentido, talvez as mães não precisassem de se preocupar com isso, se o Estado em vez de fazer campanhas simpáticas para os pais, garantisse que nenhuma criança saísse de uma maternidade sem a sua certidão de nascimento na mão, isso independentemente da vontade do pai.
Outro aspecto importante a levantar é o facto de que se por um lado o pai decide adiar o reconhecimento da criança até que ele se sinta impelido por uma força sobrenatural incerta, a mãe não tem jamais essa opção, ela tem que arcar muitas vezes sozinha (30% dos chefes de agregados familiares são mulheres) com o peso que a recusa ou a demora do reconhecimento por parte do pai implica.
Ainda sobre os limites do registo, vale apontar a que a ideia simplista de que a paternidade responsável passe principalmente pelo registo já tem criado situações nas quais esse passa a ser o único papel de um pai que não se cansa de multiplicar a prole, deixando sem peso de consciência para as mães a responsabilidade de lidar sozinha com a manutenção dos seus filhos. 

      Neste sentido ao abordar-se a paternidade responsável é fundamental e necessário ampliar nossas abordagens, ressaltando que a paternidade responsável vai além do registo e da pensão no fim do mês e exige implicação do pai na vida quotidiana da criança incluindo não somente o cuidado, participação permanente, mas uma verdadeira parceria com a mãe da criança, realizando todas as actividades que competem à manutenção da existência dessa criança, não com a ideia de que se está a ajudar a mãe, mas de que se está a fazer a sua parte (que é sua obrigação) na vida da criança. Tarefas como dar banho, mudar fraldas, dar alimento, velar a criança enquanto dorme (quando bebé), ajudar a procurar a escola ideal, acompanhar as actividades na escolinha, assistir às reuniões, faltar ao serviço para levar a filha ao hospital, etc., contribuindo dessa forma para diminuir a injusta sobrecarga das mães, que sobrevém com a maternidade compulsória. Essas sim poderiam ser as pedras do caminho de uma tentativa de paternidade responsável!