quarta-feira, 16 de abril de 2014

Vida e outras ditaduras

Meu compadre de ideias constrangedoras reapareceu, depois de um longo período de ausência. Ele sempre surge como se tivesse a função de me beliscar com questões provocantes, desta vez chegou bufando palavras escarnecedoras sobre ditaduras e como estava num daqueles dias em que se sentia inspirado a falar de maneira metafórica foi teorizando com um à-vontade quase caricatural, fazendo gestos enérgicos para dar ênfase à sua fala.
- Vou falar sobre algumas ditaduras da vida, melhor, vou falar sobre o sono. Por que ditaduras são como o sono! Disse de maneira grave.
Como já me acostumei às suas excentricidades explicativas, nem fiz menção de questioná-lo, preferi em vez disso apenas ouvi-lo, com a esperança de que no final conseguisse ao menos melhorar meu humor, que escondia minhas várias revoltas com o aumento desenfreado do custo de vida absolutamente desproporcional aos salários dos trabalhadores, obrigados a viverem de empréstimos com juros desnecessariamente abusivos e desonestos, a exploração desenfreada da força de trabalho sem compensação justa, a exposição das nossas crianças à cenas cotidianas de uma violência gratuita e injustificada vinda precisamente de quem deveria oportunizar espaços mais participativos e menos excludentes, o autoritarismo constitutivo da maioria das instituições públicas e várias outras atrocidades sociais, políticas e econômicas.
                Meu amigo começou dizendo que o sono é um pequeno e inoportuno ditador. Por exemplo, disse tentando ilustrar com exemplos seu ponto de vista.
- Imagina-te numa reunião ouvindo corajosamente aquelas informações sempre excessivas de um chefe que não tem noção do quão irritante é a gravidade teatral usada para apresentar assuntos que se confundem entre o que é urgente e o que é importante e enquanto você é obrigado a suportar toda aquela falácia, aparece uma vontade inadvertida de dormir. O sono entra assim sem pedir licença, sem mandato, nem qualquer autorização legal, sem ouvir sequer tuas reivindicações sobre querer se manter acordado só para garantir aquele contingente básico de hipocrisia exigida pelas convenções sociais. De vez em quando você toma uma pilulazinha, que pode até ajudar a resistir por mais um pouco àquela ditadura inconsequente ao custo da perda da possibilidade de experimentarmos certos exercícios de autodeterminação e singularização, porém, em momento algum esse tirano nos deixa esquecer que tal relação está longe de ser democrática, participativa e/ou minimamente honesta. Não há consulta da nossa vontade, aliás, não há sequer o reconhecimento dela, por conseguinte, qualquer ato de reflexão e crítica é automaticamente criminalizado e o infrator, penalizado com longas horas de insônia a que claro seguem-se outras consequências e torturas que impressionam pelo seu conteúdo de sevícia.

Não há vontade ou desejo que se insurja sem sofrer consequências de tal maneira que com o tempo se vá construindo a ilusão de invencibilidade. Aos poucos nos convencemos de que resistir é impossível e comprovadamente ineficaz. Submetemos-nos aceitando pacificamente a situação e acreditando ser essa passividade um ato de inteligência, mas nosso olhar displicente e acusatório nos lembra constantemente de nossa falta de coragem e de como nos deixamos vencer por esse déspota, que impinge continuamente a nós e a outros seu reino de terror, pois ainda lhe resta a certeza de que aquela chama que nos convocava a resistir, se extinguiu por que aquela nossa rebeldia, que a animava, se corrompeu ou envelheceu junto com nossas utopias e vontade de mudança.