Meu compadre de ideias constrangedoras
reapareceu, depois de um longo período de ausência. Ele sempre surge como se
tivesse a função de me beliscar com questões provocantes, desta vez chegou
bufando palavras escarnecedoras sobre ditaduras e como estava num daqueles dias
em que se sentia inspirado a falar de maneira metafórica foi teorizando com um
à-vontade quase caricatural, fazendo gestos enérgicos para dar ênfase à sua
fala.
- Vou falar sobre algumas
ditaduras da vida, melhor, vou falar sobre o sono. Por que ditaduras são como o
sono! Disse de maneira grave.
Como já me acostumei às suas
excentricidades explicativas, nem fiz menção de questioná-lo, preferi em vez
disso apenas ouvi-lo, com a esperança de que no final conseguisse ao menos
melhorar meu humor, que escondia minhas várias revoltas com o aumento desenfreado
do custo de vida absolutamente desproporcional aos salários dos trabalhadores, obrigados
a viverem de empréstimos com juros desnecessariamente abusivos e desonestos, a
exploração desenfreada da força de trabalho sem compensação justa, a exposição
das nossas crianças à cenas cotidianas de uma violência gratuita e
injustificada vinda precisamente de quem deveria oportunizar espaços mais
participativos e menos excludentes, o autoritarismo constitutivo da maioria das
instituições públicas e várias outras atrocidades sociais, políticas e
econômicas.
Meu
amigo começou dizendo que o sono é um pequeno e inoportuno ditador. Por exemplo,
disse tentando ilustrar com exemplos seu ponto de vista.
- Imagina-te numa reunião ouvindo
corajosamente aquelas informações sempre excessivas de um chefe que não tem
noção do quão irritante é a gravidade teatral usada para apresentar assuntos
que se confundem entre o que é urgente e o que é importante e enquanto você é
obrigado a suportar toda aquela falácia, aparece uma vontade inadvertida de
dormir. O sono entra assim sem pedir licença, sem mandato, nem qualquer
autorização legal, sem ouvir sequer tuas reivindicações sobre querer se manter
acordado só para garantir aquele contingente básico de hipocrisia exigida pelas
convenções sociais. De vez em quando você toma uma pilulazinha, que pode até ajudar
a resistir por mais um pouco àquela ditadura inconsequente ao custo da perda da
possibilidade de experimentarmos certos exercícios de autodeterminação e
singularização, porém, em momento algum esse tirano nos deixa esquecer que tal
relação está longe de ser democrática, participativa e/ou minimamente honesta. Não
há consulta da nossa vontade, aliás, não há sequer o reconhecimento dela, por
conseguinte, qualquer ato de reflexão e crítica é automaticamente criminalizado
e o infrator, penalizado com longas horas de insônia a que claro seguem-se
outras consequências e torturas que impressionam pelo seu conteúdo de sevícia.
Não há vontade ou desejo que se
insurja sem sofrer consequências de tal maneira que com o tempo se vá
construindo a ilusão de invencibilidade. Aos poucos nos convencemos de que
resistir é impossível e comprovadamente ineficaz. Submetemos-nos aceitando pacificamente
a situação e acreditando ser essa passividade um ato de inteligência, mas nosso
olhar displicente e acusatório nos lembra constantemente de nossa falta de
coragem e de como nos deixamos vencer por esse déspota, que impinge
continuamente a nós e a outros seu reino de terror, pois ainda lhe resta a
certeza de que aquela chama que nos convocava a resistir, se extinguiu por que
aquela nossa rebeldia, que a animava, se corrompeu ou envelheceu junto com
nossas utopias e vontade de mudança.