Falar sobre racismo por vários motivos
é sempre incômodo. sobretudo para quem sofre, evidentemente porque a pessoa
sente na pele o efeito deste tipo de discriminação e a procura de reparação
(legal) não torna necessariamente a vivência da situação menos constrangedora,
muito pelo contrário, pois invariavelmente a própria busca por justiça pode se
tornar um calvário. Seja pela exposição da vítima, pois ela precisa de explicar
várias vezes o ocorrido e nos casos em que os agentes de justiça não entendam
ela precisa de explicar também porquê aquele evento está sendo denunciado como
racismo.
Não é incomum vermos atos de racismo
serem transformados em injúria racial (esta permite que o acusado sai sob
fiança enquanto o outro é um crime inafiançável). Esta situação pode trazer
pelo menos dois problemas para quem sofreu a discriminação: (1) Uma descrença
na justiça devido ao sentimento de impunidade perante a transformação de um
crime de racismo em uma infração menor que permite que o agressor saia mais ou
menos tranquilo e (2) O desconforto que a vítima pode sentir por aparentemente
não se ter dado a devida consideração a sua versão da história, ou seja ela foi
minimizada, como se a pessoa tivesse acrescentando coisas para parecer maior do
que realmente era.
É sobre este segundo ponto que gostaria
de falar, tentando problematizar algo que me parece cada vez mais corrente,
sobretudo nos grupos de discussão que se criam nas redes sociais. Vou usar a
expressão usada por várias outras pessoas “o mimimi do racismo”.
Minha compreensão sobre o uso desta e
de outras expressões equivalentes, me parece ser, notadamente uma tentativa de
silenciamento das reivindicações de pessoas que se envolvem na luta pela
igualdade de direitos em uma sociedade que é assumidamente multirracial, mas
que infelizmente só exerce a tal da democracia racial discursivamente, porquanto
na prática cada vez mais as pessoas que se levantam para falar alguma coisa a
respeito são consideradas como diz a Aline Oliveira (Mimim do racismo) “mente
fechada”. Ou seja, não interessa se você se sentiu incomodada, ou incomodado
por algum post, comentário, fotografia, ou charge racista com que você
infortunadamente tropeçou nalgum dos grupos de que você participa, terás que
manter a boca fechada e levar sua indignação para outro lugar, porque se
tiveres a ousadia de reivindicar, questionar, ou apenas dar uma opinião
contrária à da maioria estarás buscando ofensas para décadas de terapia. Muitas
vezes a acusação mais reducionista é: “Para você agora é tudo racismo!”
Lembro de uma entrevista em que foi
perguntado ao artista Renato Aragão, se eram racistas as piadas que faziam com
o Mussum, ao que ele respondeu:“Ninguém entendia isso como racismo, ninguém.
Eram brincadeiras, eram caricaturas.”
Diante destas palavras fico pensando
como para muitas pessoas as palavras do artista não causam o mínimo incômodo e
nem se perguntam se será possível que as piadas dos trapalhões se tenham
tornado racistas apenas agora no século XXI? Acho que quem acredita nisso deve
ter muita preguiça de exercitar os neurônios, pois nem imaginam que o que pode
ter acontecido (além de várias outras hipóteses, é claro) é que a sociedade
começou a organizar-se politicamente tornando os movimentos sociais que
discutem questões raciais, direitos das mulheres, direitos das pessoas LGBT,
etc. cada vez mais fortes de tal sorte que vozes ontem silenciadas, hoje podem
ser ouvidas e exigem ser igualmente respeitadas.
Então, para aqueles que talvez pensem
nessas reivindicações reduzindo-as apenas a uma patrulha, uma onda de
vitimismo, um excesso de zelo, ou mimimi, seria bom saber que o mundo está mais
atento aos fascismos nossos de cada dia e por isso precisamos aprender ou nos
forçar a respeitar principalmente o diferente. Pois não há nobreza em tolerar o
igual, já que este se parece com a gente!
Considerando que muitas vezes quem se
sente incomodado com o suposto mimimi são justamente as pessoas que se
beneficiam de certos privilégios, que são o resultado da exclusão dos negros,
não posso deixar de pensar que essa falta de sensibilidade representa de um
lado a total ignorância que algumas pessoas brancas demonstram em relação ao
sofrimento de não-brancos e nesse caso específico de negros, quanto ao fato de
terem que lidar quotidianamente com várias situações que os levam a sentirem-se
inferiorizados, desde a uma tentativa de encontrar emprego, uma abordagem
policial e até pelo humor. Chamar de vitimismo ou mimimi às reivindicações da
população negra demonstra não apenas uma grande falta de respeito, mas mais
grave ainda, um desconhecimento crônico e lamentável da história de escravatura
sobre a qual o Brasil foi construído e de seus perversos contornos.
A obra “A Abolição” de Emília Viotti da
Costa* é rica em detalhes sobre essa perversão, que deixou como herança por um
lado uma população negra, que nem pode fazer qualquer apontamento que é tomado
por vitimismo (e essa é apenas uma das mais insignificantes das consequências)
e por outro lado, um grupo que ainda não aprendeu a diferença entre privilégio
e direito.
Dentre as várias lições históricas que
Emília nos oferece, uma que me pareceu interessante e atual (considerando as
revoluções sociais contemporâneas, as conquistas da esquerda e os obstáculos
encontrados devido a onda de conservadorismo) tem a ver com a mudança
progressiva das convicções das pessoas quanto a questão da escravatura, ou seja,
a escravidão era praticada a três séculos e ninguém questionava a ilegitimidade
da mesma. Para a sociedade brasileira da época era normal e até desejável não
apenas ter escravos, mas comercializá-los como simples objetos, tratá-los a seu
bel prazer e/ou passá-los de pais para filhos como parte da herança familiar.
Deste modo, se parodiando Renato Aragão, chegaríamos facilmente à irônica
conclusão de que: estava tudo bem, era normal e ninguém via problema nenhum,
ninguém via maldade na escravatura! Quer dizer os brasileiros de hoje (Séc. XIX
em diante) são uns “”, porque não são mais capazes de ver os benefícios da
escravidão para o país?
Bom, é preciso lembrar que para estar
tudo bem foi necessário relativizar, os direitos humanos e depois a própria
constituição brasileira, daí ficava fácil dizer que a escravatura não era um
problema, porque ninguém achava execrável que pessoas (negras) fossem separadas
das suas famílias e vendidas, marcadas como gado, porque ninguém via como
violação dos direitos humanos, afinal eles nem eram humanos! O direito de se
indignar da sua condição era-lhes recusado, porém, estava tudo bem, era normal
e ninguém via problema nenhum, ninguém via maldade na escravatura. Isso mesmo!
Exatamente por esta razão, enquanto
algumas pessoas (emancipacionistas e abolicionistas) tinham começado a
levantar-se contra a escravidão, existiam outras que pensavam sobre a abolição
da escravatura, o equivalente ao que alguns brancos hoje pensam sobre o
racismo, cotas e outras questões raciais:
Que não havia necessidade de criar
tanto caso com a questão do negro, ou pior, que era muita ousadia dos escravos
aspirarem à abolição!
Ou como hoje, que é muita ousadia dos
negros e pobres, viajarem de avião, estudarem em universidades públicas,
organizarem manifestações, exigirem cotas raciais, etc.
Em suma, é muito mimimi desse povo!
Pois bem na época da escravatura também
se consideravam muito mimimi as propostas e reivindicações com vista a abolição
da escravatura (alguém mais vê alguma semelhança?) e Viotti nos serve com
alguns bons e velhos exemplos históricos:
-O Deputado Silva Guimarães propôs uma
lei que garantisse a liberdade dos nascituros, mas a mesma não teve sucesso;
-O projeto de lei de Silveira da Mota
(proibindo venda sob pregão, leilões, e separação de famílias) demorou nove
anos para ser aprovado na câmara;
-A Lei do ventre livre, só em teoria
garantia a libertação dos escravos, pois a mesma lei permitia que essas
crianças permanecessem ao serviço dos senhores escravistas até à idade de 21
anos prestando “serviços gratuitos” em retribuição pelo seu sustento;
-A lei dos sexagenários (emancipação de
escravos com 60 anos), foi igualmente recebida de mau grado, tornando
incompreensível e revoltante a ganância de quem enriquecia com o trabalho
escravo, pois mesmo depois de ter explorado o trabalho de outros por 60 anos de
suas vidas, ainda se recusavam a dar àquelas pessoas a mínima possibilidade de
liberdade e isso numa altura em que já estava inequivocamente claro até para os
espíritos menos esclarecidos, que a abolição era a coisa certa a fazer.
Com o tempo a própria história
encarregou-se de mostrar a necessidade de mudança, deste modo, se a simples
ideia da abolição era inaceitável em 1871, dezessete anos depois a escravatura
seria abolida sem dificuldade. Mas de novo, isso não significou necessariamente
ampla liberdade e acesso irrestrito aos mesmos direitos e espaços (A abolição
da escravatura: a liberdade que não veio). Ou seja, ainda precisou-se (e
continua se precisando!) de muito “mimimi” para conseguir essa famigerada
“ampla liberdade”.
Por tudo isso, minha esperança e desejo
é que as questões do negro e do afro-brasileiro sejam um dia vistas como muito
mais do que simples vitimismo, ou uma patrulha social e que as pessoas
despertem para o fato, de que se hoje várias referências depreciativas do negro
são repudiadas, não é porque antes elas fossem menos ofensivas, mas porque
estamos todos (não apenas negras e negros) cada vez mais conscientizados dos
danos que elas causam. Se há tanto mimimi, é porque continua sendo produzido
sofrimento e felizmente na atualidade as pessoas já não têm medo de mostrar
publicamente sua indignação.
Referência
Costa, E.
V. A abolição. São Paulo. Global editora. 1986.
*Este texto
foi publicado primeiramente na revista Pragmatismo Político em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/01/nao-ha-nobreza-em-tolerar-quem-ja-se-parece-com-a-gente.html