segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Por uma psicologia descolonizada*

Hoje admitimos que os conhecimentos que circulam entre as ciências humanas em geral e a Psicologia em particular, são o resultado de uma articulação secular dos discursos coloniais, decorrentes do expansionismo do imperialismo ocidental europeu e norte-americano, contudo, embora o colonialismo tenha caído, constatamos ainda que o modo de produção do conhecimento “Psi” não mudou tanto quando se esperava, pois vivemos diante daquilo que conhecemos por colonialidade do saber.
         A Psicologia, filha legítima deste regime que oprimiu e explorou povos pelo mundo afora nasce, portanto, do imperialismo sob preconceitos raciais que justificavam a conquista, ocupação e a imposição de sistemas administrativos e culturais ocidentais aos povos não-ocidentais.
         Por essa razão é impossível não nos preocuparmos diante da constatação de que parece persistir certo fetiche por parte de alguns psicólogos por práticas que reproduzem processos de colonização dos “outros”, por meio, da categorização, discriminação, ou mesmo da objetificação e subalternização de todos aqueles que aos olhos dessa psicologia, que persiste em ser colonizadora são considerados anormais, desviantes, ou seres de terceira classe (negros, homossexuais, mulheres, idosos, pessoas com necessidades especiais, usuários de saúde mental, entre outros).  
         Não podemos negar que a falência dos impérios coloniais, ofereceu-nos novos espaços e oportunidades para questionar o regime de pensamento que orientava hegemonicamente a forma de ver e explicar o mundo, porém precisamos continuar fazendo algumas perguntas incômodas para a nossa profissão, tais como:

“O que fazer com o conhecimento produzido por essa Psicologia colonizadora, que reproduz uma relação desigual entre os povos, ou mesmo entre psicólogo e os agentes para os quais se dirige o seu trabalho?”
        *
“Até que ponto nossas práticas “psi”, não passam  de meros meios de controle social ao serviço de certas elites?”

         Apesar de nos discursos contemporâneos se sustentar a urgência de uma psicologia crítica, ainda é gritante a ausência de uma reflexão “efetivamente crítica” a respeito das desigualdades sociais e das assimetrias herdadas dos processos de colonização e a implicação na relação dos psicólogos com a sua comunidade local.
         Não se trata de jogar fora todo o conhecimento adquirido (o bebé junto com a água do banho), mas de olhar para ele como realmente é:

“Produto de uma história de opressão”

         Como é fácil imaginar não existem caminhos ou fórmulas prontas, mas felizmente, infinitas possibilidades.
        
“Descolonizar a psicologia pode ser uma delas”
        
         A descolonização a que me refiro diz respeito não apenas à independência de países colonizados, mas ao desmame de uma matriz de pensamento que se guia pela conquista, ocupação, usurpação e imposição de saberes e práticas de uns (especialistas/profissionais/ “os mestres”)    sobre os outros (usuários de certos serviços, clientes, alunos, etc.)
         Começando por me desculpar se parecer pretensioso demais, gostaria de sugerir ao menos dois caminhos para reflexão: (1) A urgência de questionamentos com o mínimo de honestidade acadêmica sobre como usar tal conhecimento de forma que não seja tão ofensivo/opressivo quanto a maneira como o mesmo foi produzido (destruindo culturas) e (2) a necessidade de descolonizar a psicologia, reinventando os mecanismos de produção de conhecimento, por meio de um saber que emerge da partilha entre o que chamamos presunçosamente de senso comum e o que denominamos de ciência e muito menos da vontade de estabelecer um saber/poder (único) sobre o “outro”.
         Claro que tal crítica não seria válida se tomássemos de novo como verdade este  conhecimento (supostamente descolonizado), para tal, precisamos admitir que ele seria quando muito um saber localizado e não mais universal como se queria na ciência ocidentalizada. Admitindo que estaríamos produzindo um saber limitado, reconhecer-se-ia que o conhecimento universal é um delírio perigoso, mas essencialmente que há muitos outros saberes que precisam ser levados em conta.

Referências
Go, J. (2013). Postcolonial Sociology. Boston: Emerald Group Publishing.
Grosfoguel, R. (2008). Para descolonizar os estudos de economia política e os estudos pós-coloniais: Transmodernidade, pensamento de fronteira e colonialidade global. Revista Crítica de Ciências Sociais, (80), 115–147.

Hook, D. (2005). A Critical Psychology of the Postcolonial. Theory & Psychology, 15(4), 475–503. 

* Este texto é uma republicação, do que foi apresentado originalmente e muito gratamente no blog: Psicologia marginal (http://psicologiamarginal.blogspot.com.br/2016/09/por-uma-psicologia-descolonizada_12.html).

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Entre os angolanos como sempre, os "mais especiais"



       Há alguns dias tive a infelicidade de dar de caras com uma notícia que trazia uma declaração no mínimo infeliz, de um governante angolano na qual aconselhava os estudantes angolanos que se encontram matriculados em universidades brasileiras, mas sem bolsas atribuídas pelo Instituto de Bolsas de Estudo do Governo da República de Angola (INAGBE), a abandonarem os seus cursos e voltarem para casa.
Bom, antes de articular minha crítica, acho pertinente dar o contexto da situação.

Angola vive desde o ano passado uma crise fiscal grave, devido (segundo o governo) à baixa do preço do barril de petróleo, que é a principal fonte de receitas do governo. Em virtude desta situação, vários outros problemas foram surgindo afetando não somente os angolanos que se encontram no país, mas também aqueles que se encontram na diáspora, dependentes de remessas vindas de Angola, como é o caso dos estudantes, não apenas no Brasil, mas em países de outros continentes, como Europa, América do Norte e Ásia.

A desvalorização do barril de petróleo levou a que se tornasse mais difícil para o governo a compra de divisas (dólar norte americano), tornando as mesmas, por conseguinte, extremamente escassas no país, dificultando o envio de dinheiro para os angolanos no estrangeiro, paralelamente à inflação galopante, que provocou a desvalorização considerável do Kwanza (a moeda angolana) em relação ao dólar.

Diante deste contexto, os estudantes no exterior passaram a ter dificuldades enormes no recebimento das remessas, pois ante toda essa situação o governo decidiu limitar a saída das mesmas por meio do envio que era feito por bancos e outras agências financeiras como Money Gramm e Western Union.

Por esta razão, vários estudantes estão em situação precária e, diferente do que a declaração do Consulado de Angola no Rio de Janeiro leva a crer, não somente os que estão cá por conta dos familiares, mas inclusive os bolsistas do governo, estão vivendo momento difíceis, que aliás, sempre sofreram com os atrasos crônicos no envio de suas bolsas pelo INAGBE (leia aqui).

A recomendação do Consulado de Angola no Rio de Janeiro não podia ser mais insensível, por que desconsidera uma série de questões, dentre as quais: que não existem “angolanos especiais”, ou seja, os que merecem continuar estudando no estrangeiro e os que não merecem.

O consulado, que deveria reconhecer o esforço dos familiares que decidiram por conta própria enviar seus filhos ao Brasil, discrimina, marginaliza e exclui, apresentando como única solução, a volta para casa.

O Consulado Geral de Angola em São Paulo, mostrando-se mais sensível, do que sua congênere no Rio, diante da situação em vez de “expulsar” os compatriotas, decidiu chamar todos os estudantes com estes problemas, para juntos procurarem soluções que contemplem “todos” e não apenas os “filhos legítimos”. Esta atitude mostrou-se assim, menos excludente e patriótica, enquanto no Rio de Janeiro, optou-se por fazer o que o governo da República de Angola se especializou. Discriminar, excluir, marginalizar e cortar os sonhos da maioria da população pobre beneficiando apenas aqueles que por um ou outro motivo são vistos como os “especiais”.


Os angolanos "mais especiais" para o Consulado de Angola no Rio de Janeiro

Há alguns dias tive a infelicidade de dar de caras com uma notícia que trazia uma declaração no mínimo infeliz, de um governante angolano na qual aconselhava os estudantes angolanos que se encontram matriculados em universidades brasileiras, mas sem bolsas atribuídas pelo Instituto de Bolsas de Estudo do Governo da República de Angola (INAGBE), a abandonarem os seus cursos e voltarem para casa.
Bom, antes de articular minha crítica, acho pertinente dar o contexto da situação.
Angola vive desde o ano passado uma crise fiscal grave, devido (segundo o governo) à baixa do preço do barril de petróleo, que é a principal fonte de receitas do governo. Em virtude desta situação, vários outros problemas foram surgindo afetando não somente os angolanos que se encontram no país, mas também aqueles que se encontram na diáspora, dependentes de remessas vindas de Angola, como é o caso dos estudantes, não apenas no Brasil, mas em países de outros continentes, como Europa, América do Norte e Ásia.
A desvalorização do barril de petróleo levou a que se tornasse mais difícil para o governo a compra de divisas (dólar norte americano), tornando as mesmas, por conseguinte, extremamente escassas no país, dificultando o envio de dinheiro para os angolanos no estrangeiro, paralelamente à inflação galopante, que provocou a desvalorização considerável do Kwanza (a moeda angolana) em relação ao dólar.
Diante deste contexto, os estudantes no exterior passaram a ter dificuldades enormes no recebimento das remessas, pois ante toda essa situação o governo decidiu limitar a saída das mesmas por meio do envio que era feito por bancos e outras agências financeiras como Money Gramm e Western Union.
Por esta razão, vários estudantes estão em situação precária e, diferente do que a declaração do Consulado de Angola no Rio de Janeiro leva a crer, não somente os que estão cá por conta dos familiares, mas inclusive os bolsistas do governo, estão vivendo momento difíceis, que aliás, sempre sofreram com os atrasos crônicos no envio de suas bolsas pelo INAGBE (leia aqui).
A recomendação do Consulado de Angola no Rio de Janeiro não podia ser mais insensível, por que desconsidera uma série de questões, dentre as quais: que não existem “angolanos especiais”, ou seja, os que merecem continuar estudando no estrangeiro e os que não merecem.
O consulado, que deveria reconhecer o esforço dos familiares que decidiram por conta própria enviar seus filhos ao Brasil, discrimina, marginaliza e exclui, apresentando como única solução, a volta para casa.
O Consulado Geral de Angola em São Paulo, mostrando-se mais sensível, do que sua congênere no Rio, diante da situação em vez de “expulsar” os compatriotas, decidiu chamar todos os estudantes com estes problemas, para juntos procurarem soluções que contemplem “todos” e não apenas os “filhos legítimos”. Esta atitude mostrou-se assim, menos excludente e patriótica, enquanto no Rio de Janeiro, optou-se por fazer o que o governo da República de Angola se especializou. Discriminar, excluir, marginalizar e cortar os sonhos da maioria da população pobre beneficiando apenas aqueles que por um ou outro motivo são vistos como os “especiais”.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

O que se esconde detrás do “Não fale em crise, trabalhe!”

Começou a ser espalhado pelo Brasil o temerário lema do atual governo:  “não fale em crise, trabalhe!”. Contudo, ninguém pode deixar-se enganar pelo que ele esconde.
Ele representa muito mais do que uma simples frase de efeito, mas aquilo que a burguesia sempre esperou da classe trabalhadora. Que ela não pare para pensar sobre as condições de trabalho, que não reflita, não questione e apenas se assujeite às extenuantes jornadas e aos salários que nem sequer chegam para suprir suas necessidades básicas, em suma, que assista inerte à redução de direitos conquistados com muita luta. Por isso espera-se, que as pessoas trabalhem apenas e não falem em crise, ou seja, não discutam nem se empenhem em entender a situação política em que o país encontra-se mergulhado.
Não é novidade que desde há muito tempo uma das estratégias usadas para garantir a máxima domesticação das pessoas, é submetê-las à um regime no qual sua maior preocupação seja a subsistência, ou seja, trabalhar apenas para garantirem o suficiente para se manterem vivos e alimentados até a próxima jornada de trabalho. Esse regime de vida garantiria que os trabalhadores não ocupassem suas cabeças com coisas como política, melhores condições de trabalho, reivindicação pela ampliação de direitos, entre outros.
Tristemente, o governo atual decidiu de alguma forma, reciclar essa estratégia de empobrecimento intelectual de toda a classe trabalhadora brasileira ao adotar o slogan “Não fale em crise, trabalhe!” que esconde na verdade a mesma premissa dos tempos em que os trabalhadores eram descaradamente escravizados por um regime de trabalho pensado apenas para mantê-los vivos até a próxima jornada.
A promoção deste slogan mostra a grande falta de consideração que o governo atual tem pela classe trabalhadora, sua aliança com o capital fica assim, mais uma vez, clara e inequivocamente demonstrada. O slogan esconde, ou melhor, deixa à descoberto de modo descarado e escancarado suas verdadeiras alianças, que não são com os setores sociais, mas apenas com os empresários.
E por essa razão o governo sustenta em total desrespeito à classe, levando os trabalhadores a se comportarem como burros de cargas, que não podem pensar, apenas trabalhar, enquanto isso,
Eles levam a cabo o rebaixamento do custo da força de trabalho;
Reformam (leia-se reduzem) direitos e garantias trabalhista conquistadas pela classe;
Mudam as regras para a aposentadoria, estendendo o tempo de trabalho ao aumentar a idade mínima para aposentar-se;
Comprometem-se com a flexibilização da CLT, o que garantiria uma precarização ainda maior do trabalho, afrouxando injustamente os mecanismos de proteção dos trabalhadores para reduzir os custos para os empresários;
Flexibilizam férias, 13o, FGTS e jornadas de trabalho, não levando em consideração, que para os trabalhadores de cidade grandes já são extremamente longas em razão de as mesmas começarem com a necessidade de acordarem de madrugada para chegarem pontualmente, pois vivem invariavelmente distante de seus locais de trabalho;
Desmobilizam a luta de movimentos trabalhistas e criminalizam os movimentos sociais;

Em suma, ao governo não interessa que os trabalhadores pensem enquanto avança o golpe ao governo democraticamente eleito e enquanto se trata como papel higiênico a constituição de 1988.

quinta-feira, 31 de março de 2016

Consumo de uns, miséria de outros

Por que o consumo sem consciência é um problema?
Esta é uma questão para a nossa era, pois o consumo desenfreado e irresponsável de bens essencialmente supérfluos é praticamente uma marca identitária da sociedade contemporânea.
Uma leitura não muito profunda sobre nossos hábitos de consumo é suficiente para nos permitir observar que cada vez mais nos afundamos num regime em que nos convencemos que comprar é sinônimo de felicidade, de ser feliz, ou seja, compramos por que temos a ilusão de que isso nos deixará felizes, ou pelo medo de continuarmos tristes pela falta. Neste sentido as propagandas cumprem o seu papel de nos estimular a consumir enfiando-nos goela abaixo aquelas publicidades machistas onde mulheres são apresentadas como o equivalente a simples objetos, junto com carros, que supostamente tornariam os homens mais atraentes e desejáveis, perfumes que nos fariam a todos irresistíveis, ternos, óculos e outras opulentas bugigangas que nos deixariam supostamente muito mais inteligentes, ou atraentes.
No afã de garantir a continuidade dessa compulsão, a mídia vende à sociedade a ilusão de que nossa capacidade financeira melhorou, deixando-nos viver desse ledo engano, pois, compramos justamente pelo contrário e prova disso é que o que compramos, seja majoritariamente por meio de cartões de crédito, ou de forma parcelada e coisas desnecessárias, descartáveis em poucos dias depois de compradas, peças de roupa, feitas para serem usadas apenas uma vez, entre outros produtos de consumo imediato.
Infelizmente este nosso estilo, não nos deixa tomar ciência dos paradoxos que nos atropelam a todo o momento. O primeiro deles está no fato de que as coisas verdadeiramente essenciais continuam caríssimas e inacessíveis para a grande maioria da população mundial.
Produtos como habitação, saúde e educação, são luxos inalcançáveis para muitas pessoas. Em algumas partes do mundo, as hipotecas de casas tornaram-se num mecanismo altamente predatório para os clientes, mesmo que paradoxalmente lícito.
Em outros, uma casa é um item quase impossível de se obter e muitas pessoas, apenas têm acesso a uma em bairros sem absolutamente nenhuma estrutura social básica (rede de esgoto, energia elétrica, água canalizada, arruamentos, etc.).
A saúde que cada vez mais se mercantiliza por ação de planos privados, e pseudocooperativas de saúde fica cada vez menos acessível, mesmo em países que utilizam algum sistema universal de saúde.
A morte de crianças pobres se tornou corriqueira e para muitas famílias igualmente pobres, sair vivo de um hospital público é uma arriscada loteria.
A educação não está isenta desses efeitos nefastos. Pois, as escolas públicas, quase sempre são as piores nos quesitos mais importantes, quando são boas, reservam-se aos alunos que provêm das classes mais favorecidas, os filhos das elites. Aos pobres como sempre, sobram de graça, apenas os presídios.
Essa tendência encontra-se de modo mais atroz nos países considerados subdesenvolvidos, para onde nas últimas décadas têm-se deslocado as indústrias, que antes se localizavam no ocidente e aqui surge um dos grandes paradoxos desse consumo desenfreado, que é o seguinte:
O argumento para o deslocamento das indústrias do “primeiro” para o “terceiro” mundo foram a geração de empregos e a possibilidade de capacitação das populações locais, contudo, isso mostrou-se uma falácia, ao se constatar que o trabalho dessas fábricas é extremamente precarizado, os trabalhadores recebem salários miseráveis e por isso são forçados a viver em condições subhumanas. A promessa de um emprego provou ser um engodo para ajustar os lucros dos capitalistas à sua extrema miséria. Como se supõe que eles já estavam mortos sem essa “intervenção”, então na cabeça destes empresários, não havia mal nenhum usá-los por míseros salários para produzir as roupas que eu e você podemos comprar por uma pechincha.
É aqui que a coisa fica nebulosa para alguns de nós, pois é onde o nosso consumo se esbarra com a miséria de uma parcela imensa, mas supostamente insignificante de algum país periférico desconhecido, sem expressão na geopolítica mundial.
O deslocamento das indústrias para países em desenvolvimento com a desculpa de que gerarão empregos e possibilidades de capacitação das populações locais provou-se uma falácia, que na verdade serve para precarizar a indústria em vez de desenvolver tais países e para explorar “legalmente” pessoas que já vivem em condições subhumanas, pois normalmente são países com regulações ambientais extremamente falhas, com governos muito corruptos que fecham os olhos ao despejo de resíduos tóxicos sem nenhum cuidado poluindo lençóis freáticos e rios importantes como acontece, por exemplo, com o rio Ganges.

Por tudo isso, precisamos começar a nos questionar sobre esse consumo irresponsável e nos mobilizarmos para práticas que sejam menos tóxicas não apenas para nós mas para as futuras gerações em todas as partes do globo.


Este texto foi publicado originalmente no Pragmatismo Político: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/03/consumo-de-uns-miseria-de-outros.html

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Não há nobreza em tolerar quem já se parece com a gente*

Falar sobre racismo por vários motivos é sempre incômodo. sobretudo para quem sofre, evidentemente porque a pessoa sente na pele o efeito deste tipo de discriminação e a procura de reparação (legal) não torna necessariamente a vivência da situação menos constrangedora, muito pelo contrário, pois invariavelmente a própria busca por justiça pode se tornar um calvário. Seja pela exposição da vítima, pois ela precisa de explicar várias vezes o ocorrido e nos casos em que os agentes de justiça não entendam ela precisa de explicar também porquê aquele evento está sendo denunciado como racismo.
Não é incomum vermos atos de racismo serem transformados em injúria racial (esta permite que o acusado sai sob fiança enquanto o outro é um crime inafiançável). Esta situação pode trazer pelo menos dois problemas para quem sofreu a discriminação: (1) Uma descrença na justiça devido ao sentimento de impunidade perante a transformação de um crime de racismo em uma infração menor que permite que o agressor saia mais ou menos tranquilo e (2) O desconforto que a vítima pode sentir por aparentemente não se ter dado a devida consideração a sua versão da história, ou seja ela foi minimizada, como se a pessoa tivesse acrescentando coisas para parecer maior do que realmente era.
É sobre este segundo ponto que gostaria de falar, tentando problematizar algo que me parece cada vez mais corrente, sobretudo nos grupos de discussão que se criam nas redes sociais. Vou usar a expressão usada por várias outras pessoas “o mimimi do racismo”.
Minha compreensão sobre o uso desta e de outras expressões equivalentes, me parece ser, notadamente uma tentativa de silenciamento das reivindicações de pessoas que se envolvem na luta pela igualdade de direitos em uma sociedade que é assumidamente multirracial, mas que infelizmente só exerce a tal da democracia racial discursivamente, porquanto na prática cada vez mais as pessoas que se levantam para falar alguma coisa a respeito são consideradas como diz a Aline Oliveira (Mimim do racismo) “mente fechada”. Ou seja, não interessa se você se sentiu incomodada, ou incomodado por algum post, comentário, fotografia, ou charge racista com que você infortunadamente tropeçou nalgum dos grupos de que você participa, terás que manter a boca fechada e levar sua indignação para outro lugar, porque se tiveres a ousadia de reivindicar, questionar, ou apenas dar uma opinião contrária à da maioria estarás buscando ofensas para décadas de terapia. Muitas vezes a acusação mais reducionista é: “Para você agora é tudo racismo!”
Lembro de uma entrevista em que foi perguntado ao artista Renato Aragão, se eram racistas as piadas que faziam com o Mussum, ao que ele respondeu:“Ninguém entendia isso como racismo, ninguém. Eram brincadeiras, eram caricaturas.”
Diante destas palavras fico pensando como para muitas pessoas as palavras do artista não causam o mínimo incômodo e nem se perguntam se será possível que as piadas dos trapalhões se tenham tornado racistas apenas agora no século XXI? Acho que quem acredita nisso deve ter muita preguiça de exercitar os neurônios, pois nem imaginam que o que pode ter acontecido (além de várias outras hipóteses, é claro) é que a sociedade começou a organizar-se politicamente tornando os movimentos sociais que discutem questões raciais, direitos das mulheres, direitos das pessoas LGBT, etc. cada vez mais fortes de tal sorte que vozes ontem silenciadas, hoje podem ser ouvidas e exigem ser igualmente respeitadas.
Então, para aqueles que talvez pensem nessas reivindicações reduzindo-as apenas a uma patrulha, uma onda de vitimismo, um excesso de zelo, ou mimimi, seria bom saber que o mundo está mais atento aos fascismos nossos de cada dia e por isso precisamos aprender ou nos forçar a respeitar principalmente o diferente. Pois não há nobreza em tolerar o igual, já que este se parece com a gente!
Considerando que muitas vezes quem se sente incomodado com o suposto mimimi são justamente as pessoas que se beneficiam de certos privilégios, que são o resultado da exclusão dos negros, não posso deixar de pensar que essa falta de sensibilidade representa de um lado a total ignorância que algumas pessoas brancas demonstram em relação ao sofrimento de não-brancos e nesse caso específico de negros, quanto ao fato de terem que lidar quotidianamente com várias situações que os levam a sentirem-se inferiorizados, desde a uma tentativa de encontrar emprego, uma abordagem policial e até pelo humor. Chamar de vitimismo ou mimimi às reivindicações da população negra demonstra não apenas uma grande falta de respeito, mas mais grave ainda, um desconhecimento crônico e lamentável da história de escravatura sobre a qual o Brasil foi construído e de seus perversos contornos.
A obra “A Abolição” de Emília Viotti da Costa* é rica em detalhes sobre essa perversão, que deixou como herança por um lado uma população negra, que nem pode fazer qualquer apontamento que é tomado por vitimismo (e essa é apenas uma das mais insignificantes das consequências) e por outro lado, um grupo que ainda não aprendeu a diferença entre privilégio e direito.
Dentre as várias lições históricas que Emília nos oferece, uma que me pareceu interessante e atual (considerando as revoluções sociais contemporâneas, as conquistas da esquerda e os obstáculos encontrados devido a onda de conservadorismo) tem a ver com a mudança progressiva das convicções das pessoas quanto a questão da escravatura, ou seja, a escravidão era praticada a três séculos e ninguém questionava a ilegitimidade da mesma. Para a sociedade brasileira da época era normal e até desejável não apenas ter escravos, mas comercializá-los como simples objetos, tratá-los a seu bel prazer e/ou passá-los de pais para filhos como parte da herança familiar. Deste modo, se parodiando Renato Aragão, chegaríamos facilmente à irônica conclusão de que: estava tudo bem, era normal e ninguém via problema nenhum, ninguém via maldade na escravatura! Quer dizer os brasileiros de hoje (Séc. XIX em diante) são uns “”, porque não são mais capazes de ver os benefícios da escravidão para o país?
Bom, é preciso lembrar que para estar tudo bem foi necessário relativizar, os direitos humanos e depois a própria constituição brasileira, daí ficava fácil dizer que a escravatura não era um problema, porque ninguém achava execrável que pessoas (negras) fossem separadas das suas famílias e vendidas, marcadas como gado, porque ninguém via como violação dos direitos humanos, afinal eles nem eram humanos! O direito de se indignar da sua condição era-lhes recusado, porém, estava tudo bem, era normal e ninguém via problema nenhum, ninguém via maldade na escravatura. Isso mesmo!
Exatamente por esta razão, enquanto algumas pessoas (emancipacionistas e abolicionistas) tinham começado a levantar-se contra a escravidão, existiam outras que pensavam sobre a abolição da escravatura, o equivalente ao que alguns brancos hoje pensam sobre o racismo, cotas e outras questões raciais:
Que não havia necessidade de criar tanto caso com a questão do negro, ou pior, que era muita ousadia dos escravos aspirarem à abolição!
Ou como hoje, que é muita ousadia dos negros e pobres, viajarem de avião, estudarem em universidades públicas, organizarem manifestações, exigirem cotas raciais, etc.
Em suma, é muito mimimi desse povo!
Pois bem na época da escravatura também se consideravam muito mimimi as propostas e reivindicações com vista a abolição da escravatura (alguém mais vê alguma semelhança?) e Viotti nos serve com alguns bons e velhos exemplos históricos:
-O Deputado Silva Guimarães propôs uma lei que garantisse a liberdade dos nascituros, mas a mesma não teve sucesso;
-O projeto de lei de Silveira da Mota (proibindo venda sob pregão, leilões, e separação de famílias) demorou nove anos para ser aprovado na câmara;
-A Lei do ventre livre, só em teoria garantia a libertação dos escravos, pois a mesma lei permitia que essas crianças permanecessem ao serviço dos senhores escravistas até à idade de 21 anos prestando “serviços gratuitos” em retribuição pelo seu sustento;
-A lei dos sexagenários (emancipação de escravos com 60 anos), foi igualmente recebida de mau grado, tornando incompreensível e revoltante a ganância de quem enriquecia com o trabalho escravo, pois mesmo depois de ter explorado o trabalho de outros por 60 anos de suas vidas, ainda se recusavam a dar àquelas pessoas a mínima possibilidade de liberdade e isso numa altura em que já estava inequivocamente claro até para os espíritos menos esclarecidos, que a abolição era a coisa certa a fazer.
Com o tempo a própria história encarregou-se de mostrar a necessidade de mudança, deste modo, se a simples ideia da abolição era inaceitável em 1871, dezessete anos depois a escravatura seria abolida sem dificuldade. Mas de novo, isso não significou necessariamente ampla liberdade e acesso irrestrito aos mesmos direitos e espaços (A abolição da escravatura: a liberdade que não veio). Ou seja, ainda precisou-se (e continua se precisando!) de muito “mimimi” para conseguir essa famigerada “ampla liberdade”.
Por tudo isso, minha esperança e desejo é que as questões do negro e do afro-brasileiro sejam um dia vistas como muito mais do que simples vitimismo, ou uma patrulha social e que as pessoas despertem para o fato, de que se hoje várias referências depreciativas do negro são repudiadas, não é porque antes elas fossem menos ofensivas, mas porque estamos todos (não apenas negras e negros) cada vez mais conscientizados dos danos que elas causam. Se há tanto mimimi, é porque continua sendo produzido sofrimento e felizmente na atualidade as pessoas já não têm medo de mostrar publicamente sua indignação.

Referência
Costa, E. V. A abolição. São Paulo. Global editora. 1986.

*Este texto foi publicado primeiramente na revista Pragmatismo Político em: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2016/01/nao-ha-nobreza-em-tolerar-quem-ja-se-parece-com-a-gente.html