Eu sou homem e talvez por isso, nunca
saberei como é realmente, ser mulher, num mundo autoritário, heteronormativo e
patriarcal, como o nosso. Porém, posso ao menos dar-me a oportunidade de ouvir
suas vozes e tentar auscultar as injustiças e desigualdades sobre as quais elas
falam, num esforço para explicar o inexplicável dessa vida sôfrega e miserável.
Tenho aprendido que nascer mulher e
ser educada na sociedade em que vivemos, não é um empreendimento fácil, pois, ela
tem que lidar com vários obstáculos. Aliás, desobstaculizar é um verbo que cabe
perfeitamente à vida das mulheres, que ouvem desde cedo vários absurdos
massacrantes.
Aprendi que ser mulher é aceitar que se
faz parte do “sexo frágil” (frágil aqui lido criminosamente como incompetente)
da classe que vive sob os auspícios do emocional. Por isso, é bem aceite, até
desejável que as mulheres chorem enquanto os rapazes engolem em seco sempre que
a ameaça de uma lágrima de qualquer natureza tenha a dignidade de molhar seus
olhares supostamente insensíveis e seguros.
Ser mulher é ouvir que existem vários
tipos de mulheres, mas que podem ser repartidas basicamente em dois. As boas
para casar e as “outras”.
É viver em uma sociedade que nos
condiciona a achar que mulher educada, inteligente abnegada e por aí fora, são apenas
as nossas mães, portanto, todas as outras, não passam disso mesmo (outras!). Pessoas
que por algum acidente genético são azaradamente do sexo feminino, uma
desqualificação crônica que acarreta vários desdobramentos indesejáveis
resultando em seres superficiais, não confiáveis, pouco ou nada racionais,
incapazes de conviver com a dura realidade que os homens supostamente mais
objetivos tratam de transformar, birrentas e reguladas por ciclos menstruais,
menopausa, gravidez, etc., que causam desregulações hormonais doentias (de
humor).
Ser mulher é ouvir sem saber bem como
reagir a provocações descategorizantes, que reforçam a escabrosa ideia de que algumas
até servem para casar, ter filhos e cuidar de uma família e quem sabe um dia,
tornarem-se não iguais aos homens, mas numa subordinada bem comportada.
É carregar na testa o estigma de ser
nada mais do que uma bunda gostosa, um peito que divide opiniões sobre se é ou
não siliconado e ter outras partes do corpo depreciadas ou valorizadas apenas
porque você escolheu não gastar seu tempo em uma academia, por que na cabeça
masculina, você serve apenas para ser “conquistada e/ ou domesticada”, como se
de um animal se tratasse.
Sexo por puro prazer, jamais! Pois
isso seria uma perversão, até porque tu te tornaste a essa altura, objeto de desejo
e jamais sujeito que deseja, aliás, ser humano, o que já pressupõe um panorama
enorme e complexo de desejos, afetos, dinâmicas relacionais, etc.
É entrar para a faculdade e ouvir impropérios
teóricos que dizem: A mulher não existe! Deixando para ti a sôfrega tarefa de
saber, que corpo é esse que transporta as marcas de minhas vivências
quotidianas?
Ser mulher é tentar fazer parte do
mercado de trabalho, mas ser relegada apenas àquelas funções subalternas –
secretária, recepcionista, ou qualquer outra que ofereça o mínimo de
visibilidade, ou poder. Aliás, poder às mulheres, é considerado algo totalmente
impensável, já que, supostamente, seus hormônios desregulados colocariam em
risco qualquer organização que dirigissem.
Progressão profissional? Só sendo
sombra, ou pior, amante de alguém.
E quando se alcança algum prestígio,
não faltam dedos que levantam motivos obscuros que expliquem isso, apenas para
desmoralizar tal façanha. Talvez apareça oportunamente alguém (homem,
provavelmente) que reivindica a cadeira de patrono de tal conquista.
Emancipação? Uma utopia
despropositada, uma mentira politicamente arquitetada para acalmar os ânimos.
Autosuficiência? Desejo proibido,
quase um sacrilégio e quem ousar tentar, sofre aquilo que a sociedade considera
de “justos suplícios.”
Ser mulher é ser uma mãe que é
obrigada a sentir-se mal com seu sucesso profissional, em vez de ter filhos que
se orgulhem por sua emancipação e emponderamento político. E seu sentimento de
culpa, em relação a dificuldade em conciliar seu trabalho com sua vida afetiva,
rapidamente pode ser transformado de forma perniciosa, numa prova de sua
incompetência.
É repudiar ataques machistas e ser
tomada como “feminista mal comida”.
É calar-se diante do assédio na rua,
na escola, no local de trabalho, etc. pois a culpa é sempre da saia curta, do
olhar “insinuante”, do andar feminino, da blusa provocante, ou seja, de quase
tudo. Você se vê inesperadamente, tendo que cuidar da forma como respiras em
público, porque aquele suspiro de cansaço de fim de expediente no elevador ou
na fila do ônibus pode facilmente se converter numa provocação sexual
propositada.
É sair comendo uma banana, ou chupando
um sorvete, correndo o risco de ser taxada de tarada.
É não poder dispor do próprio corpo em
público e muito menos em privado, é não escolher parceiros para não ser chamada
de vadia.
É viver em uma sociedade que alimenta
mitos como a sogra má, mulheres safadas, feministas mal comidas, etc., que
alimentam a obscura estratégia do dividir para melhor reinar.
É ter que ver essa violência toda ser
muitas vezes ensinada aos seus irmãos (homens) na sua própria casa e os ver
sendo recompensados por serem machistas sexistas e misóginos.
Pois
é, difícil mesmo, é ser mulher.