sábado, 14 de novembro de 2015

Eu, mulher negra, “(r)existo”


Karen Y'Almeida, graduada em Letras 
(Unesp, campus de Assis)
(R)existência”
Quilombo meu minha morada,
corpo meu, minha morada.

Nele unifico minha ancestralidade,

nele identifico e sou identificada,

corpo cicatrizado, pele marcada.


Quando pequena, lembro-me de não encontrar personagens negros nos livros literários da escola, nem com cabelos trançados, nem com os cabelos úmidos como frequentemente ficavam ajeitados os meus pra não armar e ficar feio, porque sabe como é cabelo ruim é igual ladrão, se não tá preso tá armado!
Minha mãe dizia que tinha feito curso de cabelereiro pra poder cuidar do cabelo das três filhas. Acho que a primeira vez que alisei os meus foi lá pelos 10 anos, não sei... só sei que achava lindo, apesar do incomodo de dormir de bobes e mais tarde pelos puxões de cabelo da escova, depois ferro e então chapinha. Na escola, um pouco mais tarde, lembro-me das aulas de História, nas quais o tema "Escravidão" aparecia em requintados quadros que retratavam cenas de humilhação sofridas pelos negros africanos. Num plano subjetivo, pareciam estar em uma parede, empoeirados por restarem ali desde sempre para que os descendentes dos escravos escravizados sempre se lembrassem do seu devido lugar. Claro que não percebia as aulas com olhar crítico, o que eu sentia ao ver as pinturas de Rugendas e Debret, charges ou ouvir o professor pronunciar escravo negro era um desconforto sem saber o porquê. Vergonha, pode ser que seja esse o nome ou pode ser que ainda não tenha encontrado um. Não queria parecer com nenhum dos escravos escravizados, nem com Zumbi, que parecia ser o único esperto ali na historinha que ela contava.
Quando alguém se referia a mim como negra até pouco tempo atrás eu sentia o mesmo desconforto de quando menina. Como se essa categoria não me pertencesse, estivesse bem longe de mim, num quadro empoeirado em alguma parede para que pessoas pretas se lembrassem do seu lugar.
Porque eu? Eu sou morena, meu pai é quase branco, ah! A minha avó é branca... meu cabelo com ferro até fica liso, meu nariz com pregador pode afinar: – Você tem que limpar o nariz assim filha, pra não achatar, dizia minha mãe. Quem sabe assim aquele principezinho da escola até pode olhar pra mim e não para minha amiga branca, loira, linda e tudo o que eu queria ser? Embora ela quisesse ser uma das meninas da revista e das novelas, que pareciam com ela, só que esqueléticas. Lembro-me de ter visto uma vez uma menina “morena” de cabelos alisados em uma revista sobre adolescência e puberdade, é!
Nas novelas eu não me encontrava não, mas via muito a minha mãe. Mulher negra, foi passista quando morávamos na capital (ou moravam, eu nem tinha nascido ainda), amamentou filho que não era dela e trabalhou de empregada na casa de duas famílias brancas muito bondosas quando mudamos pro interior... Sabe como é, pobres e pretos na Babilônia se puder cair fora cedo evita estatística. Era uma casa de manhã e outra à tarde, os patrões sempre gostaram muito dela – não é difícil não, d. minha mãe é a melhor pessoa que conheci nesse mundo – gostavam tanto que muitas vezes ganhávamos algumas sobras de comida pra nossa janta também. Nessa época eu era bolsista na escola. Pra sua irmã eu consegui ajeitar os dentes, pra você eu consegui o colégio, ela dizia. Lembro-me das festas de aniversário  nas quais eu nunca podia ir por não termos dinheiro, mas uma vez eu emburrei com minha mãe e fiquei sem conversar com ela por não poder ir a uma festa de 15 anos. Ela ficou tão mal que a patroa comprou a sandália pra que eu pudesse ir. Então, eu fiquei mal. E esbravejei, em silêncio, estar naquela escola onde eu me sentia envergonhada por ter uma mãe empregada, por chegar sempre a pé, por ser a diferente, ser o patinho feio, embora de coleguismo eu não pudesse reclamar porque sempre fui moça prosadeira.
Até que chegou uma época que eu comecei a perceber que o meu corpo despertava mais interesse dos meninos do que qualquer coisa que houvesse dentro ou fora da minha cabeça, não demorou pra eu entender que eu poderia ser querida por alguém tanto quanto as meninas brancas, quem sabe até por aquele galãzinho da escola, porque enfim algo chamava atenção em mim. E percebi que na televisão também era assim... então era normal, né? E aí que um pouco antes de entrar na graduação, antes de ir embora, eu conheci um principezinho que se interessou por mim. Um dia fomos pra casa dele, uma bela de uma casa, diga-se de passagem. Lembro que me disse
Eu sempre quis ficar com uma mulher morena assim. Estávamos ambos nas primeiras vezes então e... the end.
Talvez a vida universitária fosse diferente e agora eu nem passava ferro, era chapinha mesmo! E continuei a perceber que meu corpo era mais interessante do que qualquer coisa que eu dissesse ou parecesse, embora à noite fosse boa, à luz do dia eu nunca era. Muito diferente do universo quencaracolismundi.wordpress.com circundava algumas amigas, diga-se de passagem que muitas vezes quis parecer com a maioria delas. Pensando bem, acho que passei a maior parte da minha vida querendo ser ou parecer outra pessoa que não fosse comigo, minhas irmãs, minha mãe, nem ninguém que tivesse a mesma cor, lábios, olhos, cabelos semelhantes aos meus. Ser preta é pra sempre, eu pensava. Poderia esconder o que fosse de qualquer pessoa, mas a minha cor que lembrava aqueles do passado empoeirado nos quadros da parede eu nunca poderia esconder de ninguém. Lembro que certa época um rapaz negro quis ficar comigo e a resposta foi um não redondo, primeiro porque nunca havia olhado um cara negro, não me interessava, claro. Se eu nem me achava bonita, porque acharia ele então? Não sei nem porque falou comigo. E eu estava interessada em outro princepezinho... Na época nem me dava conta o quão invisível eram os rapazes negros para mim e o quão recorrente era o meu interesse pelos príncipes.
Hoje algumas dessas lembranças podem ser acessadas por mim. Hoje esse texto pode ser escrito sem receios, engasgos, vergonha. Isso porque ao longo da minha caminhada por entre diferentes lugares, pessoas e leituras possibilitaram-me o mergulho em mim mesma para compreender porque algo estava faltando – eu mesma.
As vivências com práticas culturais afro-brasileiras e o interesse crescente pelo feminismo contribuíram muito para esse processo de redescoberta e após 24 anos eu finalmente pude falar para alguém como é ser negra num mundo branco. Hoje, grito ao vento. Comecei a perceber então que ser uma preta que fala é bem melhor do que permanecer muda, submissa, alienada de mim. Devagar eu percebia que “o sempre vou ser preta” significava o meu estar no mundo e que se essa significação enfim irrompesse pra mim não haveria volta. Agora, sobre o feminismo hoje compreendo que não me contempla se não me posiciono dentro do feminismo negro, pois enquanto mulher eu sofro a opressão sexista, enquanto negra sou oprimida pelos racistas. Respiro. Pois então, a violência é dupla.
Sobre o processo pelo qual passei gosto sempre de trazer luz à fabulosa acadêmica e militante ímpar Lélia Gonzalez: a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se negra é uma conquista. E foi por aí que descasquei a tez, despi a máscara… e parece tão simples, tão óbvio o pensamento hoje que não sei como todas as vivências se misturaram e chegaram a essa arrebentação de mim, sei da libertação.
Empretecer-se, empoderar-se enquanto mulher negra que sofre por ser o completo avesso ao padrão estético imposto, que sofre por não ter lugar reservado fora dos estereótipos cotidianamente afirmados pela mídia, pela escola, pelos salários mais baixos reservados no mercado, pelos filhos jogados nas valas, pelos amigos reprodutores do racismo, pela minha reprodução do racismo, a mulher que sofre sem muitas vezes nem compreender o porquê.
 Só que claro que não foi fácil, cresci querendo ser o que não era por aprender que nunca fui boa o suficiente em nada, a TV me ensinou, a escola me mostrou e minha família não semeou porque com eles também foi assim, e com quem veio antes, mas os mais anteriores ainda foram ensinados no corte da carne e no tronco. O passado dos meus começou a ser uma presença cada vez mais latente, a minha figura no espelho me incomodava muito e percebi que minha estética, meu corpo, pelo qual fui negada tantas e tantas vezes, o qual eu mesmo neguei é a minha maior ligação com a história dos meus ancestrais — a cultura é inevitavelmente solúvel, modificável no tempo, a matéria não, o corpo bruto resiste!

terça-feira, 10 de novembro de 2015

A pizza, o green card e os "mal-entendidos": sobre ser latina nos Estados Unidos

Míriam M. C. Garrido, doutorando do curso de História na
Unesp, campus de Assis
Como mulher e brasileira que adora viajar já presenciei muitos tipos de preconceitos e situações constrangedoras. Bom, ok, não vamos “dourar a pílula”, vivenciei em muitas das minhas viagens preconceitos e assédios que me constrangiam e me deixavam impotente diante de um homem que exercia seu poder de opressão por ser homem e autóctone no espaço onde eu era apenas uma turista.
Uma vez fui a Fortaleza com meu irmão mais novo. Toda vez que pedia indicações às pessoas nas ruas as respostas eram direcionadas ao meu irmão (homem) e não a mim que havia feito a pergunta. Ali aprendi que os homens devem nos guiar nas viagens. Ou quando fui a  Lisboa e um senhor simplesmente me agarrou pela cintura e me suspendeu porque havia sorrido para mim e eu retornei o sorriso. Com pedidos agressivos de “onde é seu hotel” aprendi que além de guiada por homens eu também não podia sorrir nas ruas.
Mas agora me vejo numa situação totalmente nova. Estudante de doutorado estou morando nos Estados Unidos, uma vez que, minha pesquisa sobre militância negra brasileira tem revelado afinidades com os movimentos negros estadunidenses das décadas de 1960 e 1970. Aqui aprendi que sou mulher, latina, brasileira e outras coisas de que não me havia apercebido.
O título do texto parece estranho não? Estranho ou não ele ajuda a explicar um dos maiores estranhamentos que tive nas primeiras semanas da minha chegada aos E.U.A. Na primeira casa onde morei conheci um homem americano (40 anos), que sabia da minha condição de estrangeira obviamente. Dizendo-se interessado em me mostrar onde eu poderia comprar comida e outras coisas necessárias à minha adaptação ele se prontificou em levar-me ao mercado mais próximo, e coisas semelhantes.
Ótimo, ajuda sempre é bem vinda e as pessoas que moram a mais tempo em determinadas cidades sempre sabem os melhores lugares e os mais baratos.
No terceiro dia que o rapaz foi a casa (o que no Brasil poderia ser considerado uma república estudantil) ele perguntou se eu tinha fome e que ali próximo havia uma pizzaria. Porquê não? Eu fui... Durante o caminho para atravessar a avenida ele segurou a minha mão (ok, deve ser porque a avenida era movimentada, mas em seguida eu desvencilhei minha mão), depois me disse que era para eu me sentir segura, pois agora tinha alguém para olhar por mim (opa, com 30 anos, divorciada, me sustentando sozinha a mais ou menos 10 anos, nunca precisei de alguém “para olhar por mim”, por que eu precisaria agora?), e a conversa foi ao clímax quando ele sugeriu que talvez eu pudesse ficar definitivamente nos Estados Unidos, pois, ele casaria comigo vialibilizando assim meu pedido do green card.
“Pera”, como assim? Em que momento eu disse àquele homem que eu desejava morar nos Estados Unidos por tempo indeterminado ou me tornar “cidadã americana”? em que momento eu dei a entender que era uma pessoa (mulher) frágil que necessitava de cuidados de outrem? Em que momento eu permiti certas aproximações físicas que ele tentava mais enfaticamente após revelar as verdadeiras razões para a sua “prestatibilidade”?
Agora penso que as indagações que me passaram à mente naquele momento muito se assemelham às vítimas de violências que se sentem culpadas pelas ações do outro... Quantas mulheres saem às ruas todos os dias para trabalhar e estudar e são interrompidas – de inúmeras formas – por homens que acreditam estar exercendo seu direito de dominar uma outra pessoa? Quantas mulheres sofrem violências físicas e psicológicas (na família, na escola, no emprego) todos os dias? E o pior de tudo isso, quantas de nós mulheres não começamos a nos questionar “E se eu tivesse ido por uma rua mais movimentada? E se eu estivesse usando calças? Será que deixei ele pensar que podia fazer isso comigo?”. Não, isso não é justo comigo.
Pelo que depois me explicaram as brasileiras intercambistas, ao encontrá-lo pela terceira vez e aceitar uma pizza eu estava aceitando o “date”, ou seja, estava saindo com aquele homem. Novamente eu me senti impotente na minha condição de mulher e turista, mas agora também brasileira, que aos olhos do estadunidense é a tradução da busca pelo american dream. Só que eu não estava interessada em nada daquilo. Nem ter um “date” nem me tornar cidadã estadunidense. Repito, minha primeira reação foi pensar em que momento eu deixei implícitas essas coisas para aquele homem, mas com o tempo percebi que nada do que eu fiz ou disse indicava nenhum daqueles pré conceitos estabelecidos por aquele indivíduo.
Infelizmente grande parcela dos imigrantes brasileiros ainda vêem o casamento como uma forma de entrar para a sociedade estadunidense e garantir assim maior acesso ao bem estar social, aos bens de consumo e a elevação do status quo. Isso me foi explicitado por várias outras brasileiras em diferentes ocasiões. Mas em que medida essas mulheres também não são vítimas inconscientes de um estereótipo lançados sobre nós mulheres, latinas e brasileiras?
O texto não tem uma conclusão, eu ainda vivo aqui e estou tentando aprender a conviver com a frieza americana e a coisificação do corpo da mulher (latina de uma forma geral), mas com o texto proponho uma reflexão: até quando vamos nos sentir culpadas pelos “santos assédios de cada dia”?

domingo, 8 de novembro de 2015

A objetificação da mulher lésbica

Maria Eugenia, estudante do
curso de Psicologia, Unesp,
campus de Assis
Desde que nos conhecemos por gente, nós mulheres temos nossos corpos, desejos e sexualidades domados e limitados com imposições sociais, deturpadas noções de certo e errado, renegados por preceitos religiosos que muitas vezes nem fazem parte das nossas crenças pessoais.  É nos imposto o exercício da feminilidade, da docilidade, da ternura. Os “modos de menina” sempre faz com que nossa liberdade seja pouco a pouco tolhida, ainda nos verdes anos, diante de orientações daqueles que, teoricamente, só querem o nosso bem.

No início da adolescência, nos vemos diante de mais uma imposição, dessa vez a heterossexualidade compulsória. No entanto, muitas vezes o desejo, esse cujas correntes sociais não são capazes de prender e brota feito um rio que não se pode represar, não corresponde com as expectativas sociais.  Daí então se inicia uma sequência de questões e conflitos, desde a autoafirmação até a objetificação sexual.

Nosso corpo é visto como a serviço do masculino e o mesmo se supõe quanto ao nosso desejo. E quando nele não cabe o prazer do homem, eles o julgam incompleto. Das tantas violências sofridas, a objetificação da mulher lésbica é uma das mais agressivas. Cerceia nossos desejos, nossa expressão de afeto, nosso espaço e nossos direitos.

Nem nosso corpo, nem nosso desejo e nem nossas relações estão a serviço do prazer masculino. É direito da mulher lésbica ter sua relação reconhecida, respeitada e não objetificada em espaço algum. O corpo da mulher é dela e somente de quem ela deseja que seja. Não estamos e nem estaremos a mercê do desejo de quem não nos agrada.