sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Exploração invisível ou escravatura moderna?


Antes era bem mais fácil pensar nas formas de exploração a que estávamos submetidos, elas eram transparentes e tangíveis, sabíamos onde estavam os exploradores, pois ora eram colonizadores, ora porcos capitalistas; burgueses barrigudos e em fatiotas escandalosas desfiando o rosário da sua perversa opulência diante de miseráveis trabalhadores, ora um aristocrata que tendo nascido por alguma improbabilidade estatística dentro de uma família assim chamada nobre, que vivia sem remorsos pelos injustos privilégios de que desfrutava, sem considerar que sua ascendência tinha sido na verdade o único critério “meritocrático”, ora um escravocrata que se beneficiara de um acidente histórico que o havia tornado parte de uma sociedade cronicamente desigual, etc. os exemplos são inúmeros e se repetem escandalosamente.

Contudo, veio a época em que se iniciou o projeto da mundialização da economia, extinguindo rapidamente e com ardis ignóbeis as economias locais, diluindo negócios de pequeno porte ou engolindo-os numa estrutura econômica oligárquica global, tornando o explorador num grande outro impessoal, coletivo e sangrentamente neoliberal. Exercendo seu poder de formas (difusas) antes impensáveis, pois diferente do tempo em que esse exercício de dominação poderia ser facilmente personalizado num patrão, que era o dono da fábrica, ou de um pequeno conglomerado de mercados locais, ou que talvez até fizesse parte da mesma comunidade em que tinha instalado seu negócio e consequentemente seus filhos estudavam e brincavam nas mesmas escolas dos filhos de seus empregados, a conjuntura mudou radicalmente. A propriedade das entidades comerciais em muitos lugares se desterritorializou, sendo que os empresários passaram a adquirir ações de empresas que nem sequer sabiam apontar no mapa, pois sua parcela do negócio dependia apenas de possuir um conjunto de papéis que legitimam tal posse, junto com outros sócios, de quem ele jamais sentiu cheiro algum. Com isto o próprio dinheiro se desnacionalizou, criando os monstros que conhecemos hoje como multinacionais, garantido desta forma que aquele poder agora intangível exercido economicamente, estendesse sua influência à educação, à saúde, à cultura e essencialmente à política, transformando líderes mundiais em fantoches desses tentáculos invisíveis de poder, construindo um sistema de dominação quase impossível de explicar e mais difícil ainda de perceber, colocando vários mecanismos em funcionamento para não questionarmos sequer nossa própria condição de vida, usando para isso a capacidade dos órgãos de comunicação de insuflarem as populações com informações desnecessárias, falsas ou manipulatórias, meias verdades e realidades ilusórias ao lado de mitos e ficções altamente convincentes sem que nos seja dado tempo para repararmos no quão insólitas e improváveis elas são.

Os especialistas em quem se apostava para refletirem criticamente sobre a realidade e desmascararem os embustes discursivos de políticos que perdidos entre uma incapacidade fenomenal para conversarem com os movimentos populares que deveriam representar e o medo de perderem valiosas contribuições de empresários na forma de financiamento das suas campanhas, também se prostituem, seduzidos pela promessa improvável de glória e reconhecimento amplos, endossando posicionamentos inverossímeis, utilizando-se de uma objetividade científica que os isenta de qualquer responsabilidade moral, quanto às consequências de seus pareceres, puramente ideológicos, esqueceram-se propositadamente que com a sua intervenção, estavam apenas contribuindo para legitimar regimes de dominação e exploração a que milhares de pessoas estão submetidas diariamente.

Diante deste apanágio, o grito que um dia foi feito para os trabalhadores precisa ser reeditado urgentemente:

- Mulheres e homens de todo o mundo, unamo-nos!

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Não sou descendente de escravos, mas de homens e mulheres que foram escravizados


Ninguém nasce escravo da mesma forma que ninguém nasce intelectual, marceneiro, médico, professor, etc., tornamos-nos todas estas coisas na medida em que somos afetados pelas contingências sociais, econômicas, políticas e históricas. Portanto, escravos nascem livres, mas infelizmente, presos a um contexto sócio-histórico que os escraviza.

Tendo sido submetidos à essa dura experiência de existência justamente por terem nascido numa sociedade escravocrata, que se apossa inescrupulosamente de artifícios científicos que legitimam de forma criminosa, sua suposta superioridade rácica. É assim que algumas pessoas se vêm transformadas em escravos, - à nascença e às vezes ainda no ventre de seus progenitores, porém, aquela jamais foi a sua condição natural. Ser negro, essa sim era sua condição natural, uma manifestação de características físicas, que não possuem influência nenhuma na competência, criatividade, capacidade de desenvolvimento de instrumentos de trabalho, interação entre as pessoas, entre outros, por isso, é um absurdo apresentar os negros das Américas e de outros lugares essencialmente fora de África como descendentes de escravos.

Ademais, vejo nessa premissa uma perigosa continuidade da humilhação das mulheres e dos homens negros, negando aos mais jovens a possibilidade de buscarem identificar-se com suas origens, afinal, por que eles se orgulhariam em ter descendido de escravos? Pessoas que foram e ainda são muitas vezes diabolizadas, bestializadas e infantilizadas? Tratadas como se fossem monstros sem consciência, criaturas macabras e atrozes ou infantes sem discernimento, incapazes de distinguir por conta própria mau de bom, sem consciência moral, sem uma história, ou patrimônio cultural. E quando a possuem, é supostamente apenas graças a benevolência de seus patrões, que ao os adquirirem nos mercados de escravos emprestavam-lhes alguma réstia da sua civilidade ocidentalizada.

Portanto, não! Eu não sou descendente de escravos, mas de homens que sempre foram livres, com uma cultura e história infelizmente apagado das narrativas oficiais, de homens  que tiveram a dignidade negada e foram forçadas a viver numa subserviência injusta e desumana.

Por tudo isso, jamais serei descendente de escravos!

sábado, 21 de junho de 2014

O caminho é o que se inventa enquanto damos uma voltinha pela vida!


Este é um pensamento sobre o qual não costumamos a gastar muito tempo, o que faz parecer que cada vez nos preocupamos mais em obter receitas, trajetórias já percorridas e/ou autobiografias para copiá-las, supondo que a recriação dos cenários, ou de tais rotas nos levará à descoberta novas, vibrantes e diferentes. Porém, quando muito nos levarão de volta a lugares comuns, àqueles que já conhecemos e que reproduzem nada mais do que antigas e desnecessárias angústias. Por isso precisamos de rupturas! De aprender enquanto fazemos e de desaprendermos velhos vícios, pois isso talvez nos traga algo mais positivo, mesmo que mais trabalhoso. Ao menos, teremos a certeza de que as angústias que assim se produzem, serão nossas e autênticas. O segredo, se é que se pode dizer que exista algum, é seguir o “Jurandir” e esperar que no caminho ele teorize conosco, dando-nos a oportunidade de descobrir, que não há caminho enquanto não nos dispormos a andar, enquanto não nos mobilizamos a fazer o passeio que eventualmente nos levará a descobrir os atalhos, as pedras, as irregularidades do percurso. E assim, caminhar não será simplesmente isso, mas também um processo artístico, no sentido em que tal como o escritor, só no fim da sua escrita poderá dizer se criou uma poesia ou um conto, mesmo que de qualquer forma, não tenha deixado fazer arte. De forma parecida, nossa corridinha, dificilmente poderá ser algo diferente de uma caminhada sobre a areia às vezes áspera, às vezes macia, mas que sempre massageia nossos pés, numa manhã friorenta, ou numa tarde romântica e morna como os corações daqueles que são nossa companhia nessas corridinhas pela vida, onde descobrimos, essas coisas que não se deixam seduzir por experiências previamente biografadas.
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Mais uma vez, agradeço aos meus colegas da Incop-unesp de Assis, pela maravilhosa quarta em que tive a oportunidade de pensar a respeito das muitas caminhadas que venho feito, especialmente ao professor Carlos Ladeia, que despoletou estas e outras reflexes.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Vida e outras ditaduras

Meu compadre de ideias constrangedoras reapareceu, depois de um longo período de ausência. Ele sempre surge como se tivesse a função de me beliscar com questões provocantes, desta vez chegou bufando palavras escarnecedoras sobre ditaduras e como estava num daqueles dias em que se sentia inspirado a falar de maneira metafórica foi teorizando com um à-vontade quase caricatural, fazendo gestos enérgicos para dar ênfase à sua fala.
- Vou falar sobre algumas ditaduras da vida, melhor, vou falar sobre o sono. Por que ditaduras são como o sono! Disse de maneira grave.
Como já me acostumei às suas excentricidades explicativas, nem fiz menção de questioná-lo, preferi em vez disso apenas ouvi-lo, com a esperança de que no final conseguisse ao menos melhorar meu humor, que escondia minhas várias revoltas com o aumento desenfreado do custo de vida absolutamente desproporcional aos salários dos trabalhadores, obrigados a viverem de empréstimos com juros desnecessariamente abusivos e desonestos, a exploração desenfreada da força de trabalho sem compensação justa, a exposição das nossas crianças à cenas cotidianas de uma violência gratuita e injustificada vinda precisamente de quem deveria oportunizar espaços mais participativos e menos excludentes, o autoritarismo constitutivo da maioria das instituições públicas e várias outras atrocidades sociais, políticas e econômicas.
                Meu amigo começou dizendo que o sono é um pequeno e inoportuno ditador. Por exemplo, disse tentando ilustrar com exemplos seu ponto de vista.
- Imagina-te numa reunião ouvindo corajosamente aquelas informações sempre excessivas de um chefe que não tem noção do quão irritante é a gravidade teatral usada para apresentar assuntos que se confundem entre o que é urgente e o que é importante e enquanto você é obrigado a suportar toda aquela falácia, aparece uma vontade inadvertida de dormir. O sono entra assim sem pedir licença, sem mandato, nem qualquer autorização legal, sem ouvir sequer tuas reivindicações sobre querer se manter acordado só para garantir aquele contingente básico de hipocrisia exigida pelas convenções sociais. De vez em quando você toma uma pilulazinha, que pode até ajudar a resistir por mais um pouco àquela ditadura inconsequente ao custo da perda da possibilidade de experimentarmos certos exercícios de autodeterminação e singularização, porém, em momento algum esse tirano nos deixa esquecer que tal relação está longe de ser democrática, participativa e/ou minimamente honesta. Não há consulta da nossa vontade, aliás, não há sequer o reconhecimento dela, por conseguinte, qualquer ato de reflexão e crítica é automaticamente criminalizado e o infrator, penalizado com longas horas de insônia a que claro seguem-se outras consequências e torturas que impressionam pelo seu conteúdo de sevícia.

Não há vontade ou desejo que se insurja sem sofrer consequências de tal maneira que com o tempo se vá construindo a ilusão de invencibilidade. Aos poucos nos convencemos de que resistir é impossível e comprovadamente ineficaz. Submetemos-nos aceitando pacificamente a situação e acreditando ser essa passividade um ato de inteligência, mas nosso olhar displicente e acusatório nos lembra constantemente de nossa falta de coragem e de como nos deixamos vencer por esse déspota, que impinge continuamente a nós e a outros seu reino de terror, pois ainda lhe resta a certeza de que aquela chama que nos convocava a resistir, se extinguiu por que aquela nossa rebeldia, que a animava, se corrompeu ou envelheceu junto com nossas utopias e vontade de mudança.