domingo, 15 de dezembro de 2013

A Realidade é desobediente

Estava há dias numa reunião com colegas da faculdade, quando uma das presentes soltou uma frase que deixou meus fracos neurônios momentaneamente suspensos de tão criativa que ela me soou.
- A realidade é desobediente!

Ela deixou pairar a ideia sobre a sala, ainda por alguns instantes, enquanto a maioria de nós tentava se concentrar na profundidade daquela sentença, fazendo conexões mirabolantes com as situações que estávamos a discutir.
Eu adorei a frase, atirada assim, de rompante, sem nenhuma pretensão, mas que alcançou um efeito inesperado, porém, como já é meu vício conhecido, apropriei-me dela sem falsos pudores, imaginando exemplos vários em que ela (realidade) se comporta como uma criança birrenta, ou um adolescente com TOD (transtorno opositor desafiador), sem me esquecer da conveniente ressalva a respeito da desnecessária, mas quase imediata patologização do comportamento desse adolescente malcriado. É bem verdade que não deixei de parte a possibilidade de que o problema poderia ser também, um provável sintoma de uma sociedade inteiramente capenga e incapaz de lidar com o imprevisível. Porém, achei melhor me esforçar em abordar apenas a angústia causada pelas inconstâncias dessa criança irreverente e irrequieta, que com suas flutuações de humor nos obriga a reescrever constantemente nossos planos de longo prazo, aliás, parece até que nessa lógica seria mais aconselhável extinguir o “longo prazo” de nossos cronogramas, pois curto e médio parecem oferecer-se como nuances mais coerentes dessa parafernália cotidiana, que caracteriza nosso modo de vida supostamente moderno.

Contudo, enquanto aquele adolescente amadurece, sua rebeldia continua nos incomodando, agora mais fina e sofisticada de tal modo que aquela antiga angústia, antes experimentada apenas esporadicamente, vai-se tornando numa espécie de estado permanente, imbricando-se nas várias esferas de nossa vida (amorosa, familiar, profissional, etc.) e aquele adolescente rebelde se transforma num adulto intransigente e inflexível, elevando nossa angústia (a essa altura já patologizada) a um perigoso sentimento de frustração, devido à nossa impotência diante da tal realidade desobediente, que caprichosa nos obriga a prestar-lhe reverência.




[1] Dedico este texto ao pessoal da incubadora da UNESP-Assis (2009) especialmente à Soninha que disparou a frase e me possibilitou usá-la aqui.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Sendo babaca e homem

      Nos últimos tempos tenho ouvido com frequência, ideias que explicam vários problemas sociais como tendo origem no fato de vivermos numa sociedade que produz pessoas problemáticas, como dá para imaginar, neste caso a culpa nunca é do nosso caráter, mas sempre de uma sociedade que educa de modo racista, machista, homofóbico e por aí fora. Assim até fica fácil justificar todos os problemas recorrendo a clichês e argumentos retóricos para arrazoar sobre atitudes totalmente irresponsáveis.
       Nós homens somos especialistas nisso, aproveitamos retóricas machistas e sexistas para argumentar a favor de nossos erros e babaquices, que incontáveis vezes produzem um sofrimento indesculpável às pessoas que dizemos que amamos.
       Assim, a traição nunca é culpa do cara, já que pode ser facilmente explicada pela educação (ou falta dela). Afinal, crescemos aprendendo que ser homem é entre outras coisas:
      
        Fazer alarde das nossas paqueras irresponsáveis, sem questionar se isso não soaria à desrespeito para a parceira, aliás, dane-se ela, porque eu tenho mesmo é de provar ser macho, deixando claro que meu ego precisa deste esforço desonesto para mostrar aos amigos aquela pose de  fodão, fazendo questão de desconsiderar inclusive os compromissos assumidos com minha parceira.
 
       Flertar com outras mulheres sem pensar no mal-estar que isso causará à relação na qual você entrou voluntariamente.
 
     Tornar o conceito de fidelidade, numa definição abstrata e nebulosa, só válida quando você pode se colocar como vítima.
 
      Defender que todas estas ações são nada mais do que “brincadeirinhas inocentes”, sem verdadeiras implicações. Porém, esta é uma mentira conveniente que esconde jargões igualmente mentirosos e perniciosos como:
 
       “Estas são coisas de homem!”,
       “Homens fazem isso mesmo!”
       “Isso é apenas homens sendo homens!”
 
       Todas estas e outras frases, tentam retirar a culpa pessoal dos homens levando a vítima (mulher) a acreditar que como homens não teriam outra opção que não comportarem-se como “porcos chauvinistas”, exercitando sua capacidade de serem babacas desonestos, porque mesmo que ninguém escolha nascer homem ou mulher, qualquer um escolhe ser uma pessoa melhor, mais honesta e educada com os outros.
       Neste sentido, nós homens precisamos passar a nos responsabilizar por nossas ações sem nos escudarmos em desculpas esfarrapadas que jogam toda a culpa de nossas peripécias inconsequentes e muitas vezes de uma falta de sensibilidade que beira a psicopatia, sobre o fato de sermos homens... e os homens serem assim mesmo!
 
 

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Cultura do fracasso. Por quê não?


Enquanto surfava pela internet, fingindo que procurava alguma coisa importante, me concentrando muito sério, de cada vez que entrava inadvertidamente nalgum site “’proibido”, para desviar a atenção de quem tentava monitorar o conteúdo das páginas que eu visitava, pela expressão do meu rosto; tropecei numa notícia desoladora num site de notícias: Fracasso escolar e vergonha levam estudantes ao suicídio na China”. Fiquei ainda mais pasmo com as estatísticas que o artigo apresentava; 287 mil pessoas se suicidam anualmente naquele país. E tudo por quê?
Fracasso! Simples assim.
Essas pessoas se sentiam fracassadas, algumas delas eram adultos, jovens e até crianças e adolescentes. Pensei comigo mesmo, aí está, uma das consequências dessa história de valorizar os acertos mais do que os erros, premiar as conquistas que sabem à vitória e emergem do nosso atroz quotidiano no qual somos obrigados a aniquilar colegas, amigos, familiares, enfim, pessoas que se deixássemos, com certeza acrescentariam testemunhos interessantes às nossas vidas descoloridas, por causa da ganância obsessiva com o primeiro lugar.
Somos premiados para não fracassar, ou pior, para fracassar jamais! Um imperativo tão custoso quanto fatídico, como no caso dos exemplos degradantes que a notícia nos reporta. Ali falava da China, mas não faltam exemplos nos vários recantos do mundo.
Estes suicídios deixam uma clara e assombrosa mensagem, a respeito do que temos produzido através daquelas práticas sociais que sancionam comportamentos como a competitividade, a agressividade, a busca de resultados sem preocupação com os meios, a exploração até a exaustão das potencialidades das pessoas em nome da necessidade de acompanhar as transformações sociotécnicas (como se isso fosse possível de alguma forma), a abreviação da infância, ou sua substituição por uma vida prematuramente adulta, etc., aliás, nossas crianças aprendem cedo que fracassar é garantir de modo inescrupuloso, sua exclusão do mundo social. Infelizmente, é neste ínterim que também acaba se criando a oportunidade ideal para os palpites pseudocientíficos dos autores da literatura de autoajuda, que fazem proliferar títulos como: 8 passos para o sucesso, 10 dicas para não fracassar, Em busca da excelência, etc., prestando um desserviço ao ensinar fórmulas reducionista sobre tudo, como se a vida se restringisse a medidas ortopédicas. Perdemos tempo procurando pílulas que aumentam a produtividade, diminuem nossa sensibilidade aos problemas pessoais e coletivos; tudo em vista de uma coisa chamada de sucesso.
Por quê o sucesso é tão valorizado? Qual o problema de errar em vez de acertar? Aliás, errar às vezes resulta em descobertas importantes, como a história nos tem ensinado.
O que tem de saudável, por exemplo, fazer os pais de primeira viagem pensarem que deviam saber tudo sobre como cuidar dos filhos recém-nascidos, nos esquecendo convenientemente de sua inexperiência, deixando-os desesperados por que não sabem nada sobre crianças e desconsiderando que este é um aprendizado que se faz na prática? Ou que vantagem existe em sobrecarregar nossas crianças ainda no jardim de infância com atividades que exigem uma destreza injustamente maior do que aquela que eles são capazes de demonstrar, apenas por causa dos demagogos que apregoam o sucesso a qualquer custo?
As notícias sobre suicídio de jovens devido ao suposto fracasso em várias esferas da vida demonstram de forma assustadora as consequências de uma ditadura irrefletida do sucesso.
O custo é elevado, está visto e manter-se omisso em relação às perdas, tem custado um preço alto para muitas pessoas e não raro a própria vida!

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

LANÇAMENTO DO LIVRO

A PROSTITUIÇÃO DO POLITICAMENTE CORRETO
Aquelas brincadeiras que há mais de 3 anos vocês, amigos deste blog acompanharam, transformaram-se em livro. Por todos os comentários e tempo usado para visitar o blog, quero agradecer e convidá-los a participarem do lançamento.

Data: 08/11/2013             Horário: 19h:30min

 Local: Biblioteca Alcéu Amoroso Lima
Rua Henrique Schaumann, 777. Pinheiros
São Paulo (Brasil)

domingo, 13 de outubro de 2013

CAFEZINHO?


Gosto de pensar, que o cafezinho que oferecemos, ou nos é oferecido, é muito mais do um simples café, é um arranjo social, uma possibilidade de contato entre as pessoas, uma oportunidade de engatilhar uma conversar de forma aparentemente desinteressada, sem o formalismo que exigiria o brochante prolegômeno:

- Precisamos conversar.

Acho que a maioria não pensa muito nisso, que o café é muito mais do que uma chávena minúscula com um líquido de sabor duvidoso, que, no entanto está presente em muitas das nossas interações. Igual ao chá inglês ou à bulunga (quissangua) angolana, ele é também e essencialmente, um fato social.

A gente começa muitas vezes com um:

- ...cafezinho? Que sabemos que devemos responder com um comedido e bem educado sim! Mas também sabemos que este não é um sim qualquer. Ele é sui-gênere, especial, pois abre portas para um mundo, que um incauto não! Interromperia à meio do caminho.

“Quer um cafezinho”, é quase uma maneira inovadora de dizer, tudo bem, como vai você, como está, que tal bater um papinho? É a pergunta que trás muito mais do que aquilo que parece que se quis perguntar (por detrás do açúcar ou adoçante?), é a oportunidade de trocarmos confidências nos intervalos das supervisões, de fazermos umas fofocas básicas sobre a vida interessantemente promíscua dos colegas de trabalho, uma desculpa sancionada socialmente para interromper discussões acaloradas, ou para propor uma mudança de direção naquelas abordagens desnecessariamente incômodas.

É um convite para matar a saudade das conversas, que não precisam levar a lugar algum, mas nos permitem usar a companhia do outro, sem preocupações com assuntos sérios e comedidos.

Esse cafezinho é o ingrediente que torna encontros banais em momentos interessantes e gostosos, tão doces que faz esquecer o amargor que sobrevive aos nossos dramas cotidianos. Com adoçante ou açúcar, ele é o fato que consubstancia o social!
                                              
OBS.: Este texto é uma homenagem ao pessoal da República São Jorge (Claudinei, Maico e Waldir).
 

domingo, 15 de setembro de 2013

Difícil mesmo é ser mulher!

Eu sou homem e talvez por isso, nunca saberei como é realmente, ser mulher, num mundo autoritário, heteronormativo e patriarcal, como o nosso. Porém, posso ao menos dar-me a oportunidade de ouvir suas vozes e tentar auscultar as injustiças e desigualdades sobre as quais elas falam, num esforço para explicar o inexplicável dessa vida sôfrega e miserável.
Tenho aprendido que nascer mulher e ser educada na sociedade em que vivemos, não é um empreendimento fácil, pois, ela tem que lidar com vários obstáculos. Aliás, desobstaculizar é um verbo que cabe perfeitamente à vida das mulheres, que ouvem desde cedo vários absurdos massacrantes.
Aprendi que ser mulher é aceitar que se faz parte do “sexo frágil” (frágil aqui lido criminosamente como incompetente) da classe que vive sob os auspícios do emocional. Por isso, é bem aceite, até desejável que as mulheres chorem enquanto os rapazes engolem em seco sempre que a ameaça de uma lágrima de qualquer natureza tenha a dignidade de molhar seus olhares supostamente insensíveis e seguros.
Ser mulher é ouvir que existem vários tipos de mulheres, mas que podem ser repartidas basicamente em dois. As boas para casar e as “outras”.
É viver em uma sociedade que nos condiciona a achar que mulher educada, inteligente abnegada e por aí fora, são apenas as nossas mães, portanto, todas as outras, não passam disso mesmo (outras!). Pessoas que por algum acidente genético são azaradamente do sexo feminino, uma desqualificação crônica que acarreta vários desdobramentos indesejáveis resultando em seres superficiais, não confiáveis, pouco ou nada racionais, incapazes de conviver com a dura realidade que os homens supostamente mais objetivos tratam de transformar, birrentas e reguladas por ciclos menstruais, menopausa, gravidez, etc., que causam desregulações hormonais doentias (de humor).
Ser mulher é ouvir sem saber bem como reagir a provocações descategorizantes, que reforçam a escabrosa ideia de que algumas até servem para casar, ter filhos e cuidar de uma família e quem sabe um dia, tornarem-se não iguais aos homens, mas numa subordinada bem comportada.
É carregar na testa o estigma de ser nada mais do que uma bunda gostosa, um peito que divide opiniões sobre se é ou não siliconado e ter outras partes do corpo depreciadas ou valorizadas apenas porque você escolheu não gastar seu tempo em uma academia, por que na cabeça masculina, você serve apenas para ser “conquistada e/ ou domesticada”, como se de um animal se tratasse.
Sexo por puro prazer, jamais! Pois isso seria uma perversão, até porque tu te tornaste a essa altura, objeto de desejo e jamais sujeito que deseja, aliás, ser humano, o que já pressupõe um panorama enorme e complexo de desejos, afetos, dinâmicas relacionais, etc.
É entrar para a faculdade e ouvir impropérios teóricos que dizem: A mulher não existe! Deixando para ti a sôfrega tarefa de saber, que corpo é esse que transporta as marcas de minhas vivências quotidianas?
Ser mulher é tentar fazer parte do mercado de trabalho, mas ser relegada apenas àquelas funções subalternas – secretária, recepcionista, ou qualquer outra que ofereça o mínimo de visibilidade, ou poder. Aliás, poder às mulheres, é considerado algo totalmente impensável, já que, supostamente, seus hormônios desregulados colocariam em risco qualquer organização que dirigissem.
Progressão profissional? Só sendo sombra, ou pior, amante de alguém.
E quando se alcança algum prestígio, não faltam dedos que levantam motivos obscuros que expliquem isso, apenas para desmoralizar tal façanha. Talvez apareça oportunamente alguém (homem, provavelmente) que reivindica a cadeira de patrono de tal conquista.
Emancipação? Uma utopia despropositada, uma mentira politicamente arquitetada para acalmar os ânimos.
Autosuficiência? Desejo proibido, quase um sacrilégio e quem ousar tentar, sofre aquilo que a sociedade considera de “justos suplícios.”
Ser mulher é ser uma mãe que é obrigada a sentir-se mal com seu sucesso profissional, em vez de ter filhos que se orgulhem por sua emancipação e emponderamento político. E seu sentimento de culpa, em relação a dificuldade em conciliar seu trabalho com sua vida afetiva, rapidamente pode ser transformado de forma perniciosa, numa prova de sua incompetência.
É repudiar ataques machistas e ser tomada como “feminista mal comida”.
É calar-se diante do assédio na rua, na escola, no local de trabalho, etc. pois a culpa é sempre da saia curta, do olhar “insinuante”, do andar feminino, da blusa provocante, ou seja, de quase tudo. Você se vê inesperadamente, tendo que cuidar da forma como respiras em público, porque aquele suspiro de cansaço de fim de expediente no elevador ou na fila do ônibus pode facilmente se converter numa provocação sexual propositada.
É sair comendo uma banana, ou chupando um sorvete, correndo o risco de ser taxada de tarada.
É não poder dispor do próprio corpo em público e muito menos em privado, é não escolher parceiros para não ser chamada de vadia.
É viver em uma sociedade que alimenta mitos como a sogra má, mulheres safadas, feministas mal comidas, etc., que alimentam a obscura estratégia do dividir para melhor reinar.
É ter que ver essa violência toda ser muitas vezes ensinada aos seus irmãos (homens) na sua própria casa e os ver sendo recompensados por serem machistas sexistas e misóginos.
Pois é, difícil mesmo, é ser mulher.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Aprendendo a ser preto


Eu cresci em um lugar onde não falamos muito sobre racismo, pois é um assunto quase proibido.  Sempre que o mesmo surge, as pessoas tratam de mudar de tópico, agitando-se desconfortavelmente nas cadeiras, ou tratando de desmoralizar e descategorizar a discussão.
- Deixa disso rapaz, aqui não tem racismo, tem diferença social. Pessoas que têm e que não têm, apenas isso. Racismo é coisa dos países europeus. Por isso aprendi desde cedo, que não interessava falar sobre discriminação racial e acabei assim, perdendo uma grande oportunidade de saber quando se estavam a referir à mim de forma preconceituosa e racista. Vim para o Brasil, estudar e continuei a dizer sempre que me perguntavam que ainda não tinha sido discriminado, pois na minha cabeça, discriminação era ser chamado de criolo, ser associado à escravatura ou qualquer coisa parecida, ou ainda ouvir aquelas frases travestidas de sabedoria popular, do tipo: Preto quando não suja na entrada, suja na saída; Preto é como carvão, se não queima, suja; etc., porém, tinha-me passado despercebido um pormenor importante: a discriminação feita às claras era crime e por isso jamais alguém faria abertamente alguma brincadeira pretensamente racista. Por isso, era fácil ter a falsa impressão de que não havia discriminação.
Além disso, meus supostos novos amigos eram muito atenciosos comigo e por isso, jamais tomei como ofensa certas piadas. Aventei mesmo que podiam ser apenas resultado do à-vontade com que se acostumaram a tratar-me, de tal modo, que já não me questionava sobre aquela piadinha que faziam das fotos:
- Meu! Se não fosse pelo sorriso, não saberíamos onde você está;
Ou do folclore envolvendo uma espécie de virilidade bestializada, criando-se mitos de uma dotação masculina quase sobre-humana.
 - Oh negão, se você entrar de sunga na piscina eu saio!
Como eu gostava de roupa branca, também não eram raros aqueles piadistas que me perguntavam como eu fazia para manter minhas roupas tão brancas? Normalmente todo mundo achava graça dessas piadas e às vezes eu mesmo chegava a cair também na risada, por que na minha cabeça de recém-chegado, desacostumado às minúcias desses movimentos discriminatórios, aquelas piadas eram brincadeiras inocentes.
Não demorou e comecei inclusive a comprar o discurso de que aqui não tem preconceito, que o que existe é nada mais do que um complexo de inferioridade introjetada pelos “morenos” (morenos como um eufemismo pobre, diga-se de passagem, para preto ou negro). Ou seja, o preconceito, estava na cabeça dos pretos, que tinham complexo de inferioridade e outros problemas de aceitação. Entretanto, ninguém parecia muito preocupado em questionar como estes supostos “problemas de aceitação” se criam, afinal, ser preto pode ser uma questão genética, mas o sofrimento que advém disso, com certeza está muito além do genético.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Disciplina do consumo, ou consumo que nos disciplina?


O consumismo parece estar a constituir-se atualmente, como um dos maiores males da nossa sociedade, rivalizando com problemas como: superpopulação, desemprego, pobreza extrema, guerras mundiais e toda a sorte de questões, que garantem sempre uma venda lucrativa para a pomposa “grande mídia”.

Pois bem, ele parece ser agora, um mal crônico entre nós, já que a impossibilidade de consumir as porcarias vendidas como produtos essenciais para nossa ridícula existência é quase sempre vivida com um grande mal-estar, mesmo sendo coisas totalmente dispensáveis. Não se trata mais de procurar alguém para amar e partilhar o pouco de romantismo, que nossa sociedade cronicamente materialista ainda nos deixa experimentar, nem de buscar o companheirismo desinteressado e altamente desvalorizado de velhos e novos amigos, ou muito menos o afeto convenientemente tradicional de pais e filhos, enfim, qualquer coisa que tenha a aparência de gratuitidade. Muito pelo contrário, trata-se de potencializar uma vida rica em estímulos, mas infelizmente, sem profundidade alguma.

Tira-se-nos aos poucos a sensibilidade, esvaziando-nos por dentro, dessensibilizando-nos, transformando todos em corpos inertes, incapazes de experimentar verdadeiras emoções, substituindo nossa antiga capacidade de nos injuriarmos com o supérfluo, por quaisquer impressões superficiais, desprovidas de alguma excitação. Fazendo com que palavras como tesão e adrenalina, percam todo seu sentido, dando lugar a apatia, ao embotamento das emoções e à diluição da vontade de viver, que via-se manifestada na conhecida rebeldia incompreendida dos adolescentes, na marginalidade perigosa dos reacionários e nos posicionamentos necessariamente polêmicos, virulentos e radicalistas dos movimentos sociais. É isso, deixamos impavidamente, que este vírus reduza-nos cada vez mais a autômatos reprodutores de códigos vazios e sem sentido, sobrando apenas uma vida totalmente disciplinada e nada imaginativa.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

Tarja Preta - Beleza que se põe à mesa

"Pessoal, normalmente eu apenas coloco crônicas minhas aqui no blog, mas não resisti a este texto, eu achei muito interessante e tive que pedir a autora para postá-lo aqui. Eu adorei, espero que vocês também se deleitem com a leitura."

Atenção: Texto contra-indicado para pessoas que sofrem de ignorância aguda.
 Pode causar dano a beleza.

Quanta beleza tem um corpo cheio de saúde!


“Seu rosto é lindo!”

“Se você emagrecesse só um pouquinho, ficaria linda.”

Estes são os piores ‘elogios’ que já ouvi.
Ok, só o rosto... Tirando o ‘resto’ fora do padrão.

E o pior, estes elogios vêem em geral de pessoas próximas, dos amigos, da família.
Visitar os parentes e ouvir: - você parece que engordou mais?!
Xi... É de praxe! É a primeira observação de todos.

Vai a intercâmbio? Vixi... Na Espanha só comem batata, agora é que vai engordar, heim?!
Quando não vêm aquelas piadinhas - dos que se consideram mais íntimos - e, portanto, (erroneamente) mais habilitados ao desrespeito: “Cuidado pra não sair rolando, heim?!” “KKK” – todos riem.

A risada! Aquela que legitima o preconceito.
Tudo fica ameno quando se ri. Todos acompanham... ahh..pois era só uma brincadeira. Por que você tem que levar tudo tão a sério? (Pois, você que não riu, sai como o carrasco da turma).

E aqueles que passam a vida analisando o biotipo dos outros?! O assunto só gira em torno do corpo, das vestimentas.

Sim. Porque gordas, gordinhas, e companhia acima do peso ‘têm’ de usar vestimentas ‘apropriadas’! Em geral são as que tampam o máximo possível. É escandaloso mostrar gorduras.
Top? Shortinho? Sainha? É pras magérrimas mermão, não sabe, não?! Aquele velho jargão: é pra quem pode!

Entendo que no mercado faltam opções, a moda chega ao máximo até o tamanho 42, o que nos sobra são as grandes mangas, roupas escuras pra ‘disfarçar as gordurinhas’ e longas para suavizar e alongar a silhueta. Então temos que viver nos escondendo? Sim. Senão corremos o risco de sermos taxadas de ‘propositalmente escandalosas’. E de fato nos sentimos escandalosas vestindo os manequins PP. Isso é muita hipocrisia! Como se todas tivéssemos aquelas costelas a menos das barbies que ditam moda.

E aquele momento em que você está num lance com um garoto e ele solta:
“Você é gordinha, mas tem outras coisas que compensam: a pele macia, por exemplo.”
Os ‘apesar de’, seguido das ‘compensações’. Que preconceito não conhece isso?

Você adora um balanço ao som do forrozinho? Então não podem faltar aqueles comentários: “Sabe, admiro que você não se intimide, coloca calça que marca e sai para dançar, ou aquelas comparações: “Como você consegue fazer esse passo com ela que é mais pesada que eu, e não consegue fazer comigo?”
Poderia ser tantas respostas para essa pergunta. O fato de ser leve para dançar e me deixar conduzir? (Um dos quesitos para uma boa dança). Ou o fato de praticar mais a dança? (Inclusive por ser namorada do professor).

Mas não. Apesar de sermos da academia e, teoricamente, procurarmos várias respostas para os fatores humanos, não fazemos isso no cotidiano. Saindo das dissertações e teses somos grandes superficiais. Seguimos a logiquinha de X=Y, ou 1+1=2. No sentido em que existe apenas uma resposta para uma pergunta – ainda que se trate de humanidades. Quanta leiguisse para pouco acadêmico!

E quanto machismo! Sim, ao olharmos para o corpo do outro e legitimarmos um `ideal` estamos novamente reproduzindo o discurso que tanto criticamos. Onde está nosso feminismo tão aclamado? O `corpo livre`, o `corpo laico` das bandeiras que erguemos nessa onda de protestos? Ficaram para os facebook`s?!

Não. Apesar das frases retiradas do cotidiano e transcritas acima, eu não me considero gorda (não seria problema nenhum ser), mas digo por questões quantitativas, estou com alguns quilos acima do peso considerado ‘ideal’. E que ideal é esse?
Vende - se Ideais.
(Nota de rodapé) - Reações adversas: Se utilizado em altas doses esse produto pode causar infelicidade.

Ideal que a mídia vende.
E nós compramos.
Juntamente com os inibidores de apetite, as loucas dietas, o mau humor que isso nos gera, as vontades sendo repreendidas, a infelicidade - tudo em troca de um ideal injetado.
Que masoquismo é esse?

Esse corpo, ideal de beleza considerado ‘normal’, corresponde à famigerada curva de normalidade.

Outro conceito que se tornou mais uma daquelas regras ‘simples’.
Há uma curva de normalidade. Os que se enquadram nela pelo índice de IMC (Índice de Massa Corporal) são os ‘normais’. Aqueles que apresentam um peso superior à sua massa corpórea indicada como ‘normal/esperada’ são os ‘acima do peso’, os ‘gordinhos’ e aqueles que apresentam massa corpórea inferior estão abaixo do esperado, os extremamente magros.

O interessante é que os ‘desinformados de plantão’, sempre aparecem com a maior preocupação. Não, não é questão de beleza que tem de estar entre os ‘normais’, é pela saúde.

Noto que nesse caso, as pessoas consideradas ‘abaixo do peso’ (aqui não incluo as que apresentam distúrbios alimentares) não são tão cobradas para ‘ter saúde’ como as ‘gordinhas’. Será que é porque estas abaixo do IMC se assemelham às tão saudáveis top models?!
- Ah não Naeli. Não pode ser porque essas beldades são consideradas de corpinho ‘padrão’!

Porque ter saúde significa ser magro. Não importa as atividades do seu dia a dia, não importa a caminhada, a dança ou o fato de pedalar todos os dias. A interpretação é simples: se é gordo = é sedentário = não é saudável = não tem saúde. Isso pode ser observado em uma das perguntas que um entrevistador fez à modelo Plus Size – Fluvia Lacerda - (Assista em: http://www.youtube.com/watch?v=lfPGY_EL8ws. Minuto 3:18).

Afinal, o que é saúde? Quem é saudável?
Aquele que vai à academia religiosamente todos os dias e não dorme sem o ‘bom e velho’ calmante?

Ou aquele que faz yoga, é vegetariano, não toma refrigerante por 10 anos, mas não consegue habitar ambientes em que os objetos não estejam milimetricamente organizados?
                                                                                  Naeli Simoni de Castro


segunda-feira, 10 de junho de 2013

E se meu prato de arroz fizesse política?

Há alguns dias, estava a passear pelo campus da minha faculdade, quando encontrei um grupo de alunos entusiasmados, envolvidos em uma discussão que parecia valer a pena ouvir; e como eu sempre me interessei pelos assuntos alheios, aproximei meus ouvidos (curiosos) justamente no momento em que um deles proferia a teoria de que nosso estômago é um instrumento político, que o arroz com feijão, a feijoada, o pirão com peixe seco, ou quaisquer outras comidas que nos acompanham teimosamente,  em nosso dia-a-dia, são grandes mediadoras das relações sociais.
Franzi o sobrolho, tentando propositadamente deixar transparecer meu descrédito e talvez até minha convicção de que ele estava cada vez mais próximo de um episódio de loucura, porém, ele apressou-se em acabar com o meu resistente cepticismo e o ponto de interrogação que ameaçava surgir no meu rosto, arranjando uma maneira de integrar um argumento que parecesse convincente:
 - Vocês lembram-se do dito popular “diz-me com quem andas e dir-te-ei quem és!”, pois bem, eu sempre achei uma boa ideia essa frase e confesso que muitas vezes usei-a sem pensar muito além de seu sentido superficial e tendenciosamente discriminatório, contudo, recentemente descobri, que um cara chamado Brillat-Savarin, modificou-a para: “diz-me o que comes e te direi de onde vens”. Pus-me a pensar, tentando vislumbrar um sentido mais profundo e crítico para a frase, de modos que passei a procurar outras referências para refletir a respeito da mesma; e quando então, minha curiosidade começou a ser satisfeita, passei a achar, que jamais comeria um prato de carne da mesma maneira, pois percebi, que até nisso havia uma proposição política. Que o que eu comia indicava um status e o que escolhia no menu, gritava alto meu poder aquisitivo.
Meu arroz com feijão era no fundo muito mais do que um monte de calorias inertes; era também e antes de tudo uma condição social, um modo de demarcação de território, uma identidade cultural, de classe, sexo, raça, nacionalidade, religião e uma contratação de relacionamentos interpessoais, etc., que alimentam nosso imaginário quotidiano. Através da comida dividimos ricos de pobres, sofisticação de simplicidade e ainda estabelecemos regras de transitoriedade nos e pelos espaços público e privado.
Também compreendi que, se a “comida de mãe” distingue-se da “comida de restaurante”, é muito mais pela familiaridade do ambiente em que ela era apreciada, do que verdadeiramente pela sua qualidade.
Tudo isso serviu ao menos para entender pequenas coisas e responder a perguntas que eu abafava devido à culpa religiosa que não me deixava questionar por quê as melhores partes do frango iam sempre para o meu pai, que injustamente já comia ovos com batata frita ao café da manhã, enquanto nós tínhamos que nos contentar em engordar o pão com manteiga, acompanhado de um dietético chá de camomila; e agora, finalmente ficou clara para mim, a razão pela qual meus coleguinhas do primário, teimavam em separar-se em grupo dos que traziam o lanche de casa e dos que o compravam na cantina.
Claro que eu não concordei com a teoria do rapaz e depois, não podia suportar que meu café da manhã discordasse dos discursos esquerdistas, que eu defendia nos debates de que participava. Mas por via das dúvidas, faria algumas reformas na minha dispensa!

segunda-feira, 13 de maio de 2013

Sobre a greve de estudantes na Unesp-Assis


A revolução começa em nossas consciências!
Esta é a frase que tenho sentido pairar na Faculdade de Ciências e Letras de Assis, desde o dia em que o “sim à greve!” tornou-se o grito de guerra adotado pelos alunos, que se no início deixavam brechas para serem atacados devido à falta de assertividade das pautas propostas e outras fragilidades, puderam mostrar com o passar dos dias, ao que vieram, ou seja, fazer legítimas suas reivindicações.
A “causa” foi assim crescendo, com um nível de organização que  transformou, gritos inócuos em vozeirões cada vez mais audíveis e assustadoramente mais coerentes; donos de uma personalidade pouco vista nos momentos atuais, onde enfraquecem à olhos vistos várias das antes fortes propostas de reivindicação de direitos sociais e políticos.
O movimento abandonou  a blogosfera, transcendeu o facebook e foi às ruas, tratando de ocupar os espaços físicos do campus e melhor ainda, ocupando as cabeças dos alunos, obliteradas por medos compreensíveis da autocracia de alguns docentes e mostrou algo, que há muito parecia perdido: solidariedade. Os estudantes do campus de Assis uniram-se, com suas reivindicações mais do que justas e a seguir, galoparam ao encontro dos confrades de outros campi da Unesp. Logo, logo, mostraram ao Estado e com um pouco de sorte, ao mundo, que não estão adormecidos para as injustiças sociais, que a implicação e a resistência não foram totalmente perdidas e ainda há, por isso, motivos para acreditar na esperança como uma virtude sobre a qual vale a pena construir utopias com potencial inimaginável para se tornarem causas que justifiquem a ocupação de todas as faculdades do país e do mundo, ou para reivindicar o lugar social e político que nos está sendo sistematicamente retirado.
Outro aspecto interessante, foram os brados que se recusaram a calar e falaram tanto contra como a favor. Infelizmente,  muitas vezes as vozes contrárias foram recebidas com animosidade, paradoxalmente, ainda conseguiu-se garantir um exercício doloroso, mas sério de democracia. Todos, na medida do possível, puderam participar e opinar; e mesmo que várias críticas ainda possam ser costuradas, imagino que não seria leviano afirmar ter havido votações o mais justas possíveis.
Se essa não for uma lição de democraticidade experimentada pelos alunos, que se possa legitimá-la ao menos, como uma experiência sui-gênere, afinal, foi uma interessante demonstração de responsabilidade e se não; por tudo o resto, acho que os alunos merecem o devido reconhecimento e respeito.
Sem cair no erro de parecer um glorificador ingênuo da causa, gostaria também de participar, como posso, para dizer que as revoluções não se sustentam por elas mesmas e por isso, uma logística de alternativas deve também fazer parte do processo, propiciando ao contrário de uma radicalização desnecessária de frentes, uma oportunidade de reflexão que leve como consequência à mudança de cenários, sempre que se mostre estrategicamente necessário.
Por fim, desejo, que esta seja (tal como suponho que espera a maioria), uma verdadeira revolução dos modos de pensar nossas realidades sociais, econômicas, políticas e históricas, que transcenda a satisfação de desejos e vaidades individuais.

segunda-feira, 6 de maio de 2013

Por quê trabalhar?


Tenho um amigo que faz muitas viagem para a vida e por isso, surpreende-me frequentemente com novas barbaridades teóricas. Acho que para os que leem esse blog sabem a quem me refiro. Pois então, agora ele voltou a deixar minha ignorância à descoberto, ao dizer-me que as formas instituídas de trabalho, como o emprego, por exemplo, são com certeza uma das maneiras mais perniciosas de exploração e violação dos direitos humanos.
A princípio eu recusei-me a admitir que isso pudesse ser verdade, pois como a maioria das pessoas da minha época, cresci ouvindo constantemente ideias, que faziam o trabalho parecer uma das poucas estéticas de vida aceitável, ao lado de outras balelas estruturantes das nossas realidades ilusórias (casamento, identidades de gênero e sexo, superioridade rácica, classes sociais, doenças mentais, justiça social, etc), que existem sob o véu de verdades universais, aliás, uma pretensão absurda, descabida e totalmente irrefletida.
Deste modo, dizia meu amigo, quase enfurecido:
- Começamos muito cedo a acreditar, que ele dignifica o homem, mas esconderam convenientemente, que os valores que se seguem, hoje em dia, como a competitividade e urgência, obrigam-nos a digladiar constantemente com nossos semelhantes, por uma vaga de emprego, uma promoção, um aumento irrisório no salário, etc., tornando-nos piores que animais selvagens.
Também quiseram que pensássemos, que ele é um direito universal, porém, esqueceram de nos dizer, que sempre existirá, por questões estratégicas do modo de produção capitalista, um exército de reserva de mão-de-obra desempregada, para manter equilibrada a roda da oferta e procura; e pensando agora, talvez esse seja na  verdade o único meio de participação social e política, a que a famigerada classe trabalhadora poderá ter acesso, numa sociedade onde nada mais faz-se por ela, além de esvaziar-lhes sua força de trabalho, ou expropriar sua autonomia de formas vergonhosamente degradantes e alienantes, movendo-se na contra-corrente de um presunçoso projeto de autorrealização e autoprodução de sujeitos, que ironicamente sustenta-se, ser apenas possível pelo trabalho. E para não contestá-lo com o argumento de que com o trabalho, pelo menos obtêm-se condições para comprarem o que precisam, meu amigo, fez-me ver com sua arrogância argumentativa, que na verdade, o que acontecia era ainda mais degradante, por que ao contrário do que se pensa comumente, com a lógica atual do trabalho formavam-se consumidores e não trabalhadores. O trabalho transformou-se em produtor de demandas consumista de tal forma que hoje trabalhamos essencialmente para consumir, pois essa é a atitude que sustenta o modo de produção capitalista. E assim, capitalizou-se tudo à nossa volta: nossos afetos, prazeres, ambições, lazer, em suma, nossa subjetividade e quem tenta produzir um modo diferente de existência é logo posto à parte.

domingo, 10 de março de 2013

Filas possíveis


Não há praga maior do que as filas. Difíceis de controlar, praticamente impossíveis de erradicar, mas não há como negar sua utilidade, pois fornecem indicadores interessantes sobre um país e são de uma proporcionalidade fantástica. Veja que, quanto menos desenvolvido o país, tanto maior a crença da população de que elas são o melhor exemplo de sociedade organizada.
Falam sobre o nível tecnológico de uma nação, por exemplo, se as pessoas precisam de acordar quatro horas antes do expediente para entrarem numa fila incompreensivelmente longa, apenas para ter acesso a algum serviço público, é por que o país ainda não é muito avançado.
Se as pessoas continuam a preferir este hábito (ou vício, dependendo do caso) suburbano apesar do atendimento ser dependente exclusivamente de uma senha eletrônica, é por que a ignorância informática ou nível de analfabetos é provavelmente muito maior do que as estatísticas mentirosas do governo apresentam. Porém, não podemos negligenciar seu alto valor antropossociológico, afinal,  as mesmas servem para garantir a tão benfazeja socialização das mulheres, proporcionando-lhes alguns momentos de uma cartase saudável e gratuita ao fofocarem sobre o vizinho que não imagina que é corno graças a demora na fila do ônibus. Matondelo, um  psicólogo famoso da universidade de Broblim também ressalta a sua importância no aumento da autoestima da menina do caixa do supermercado, que graças a esse artifício social despropositado, ganha xavecos improvisados em cima das listas de compras, enfim, sem elas talvez não saberíamos o que seria beber e fumar socialmente. Aliás, há mesmo uma teoria que diz que homens e mulheres de países subdesenvolvidos são mais felizes, porque eles têm na fila a oportunidade de xingar sem medo de represálias aqueles que atrapalham esse tipo de organização. E não é por acaso que os maiores índices de pobreza estão nos primeiros, aliás, os economistas descobriram que quanto mais tempo as pessoas passam nas filas, tanto menos tempo passam a trabalhar (são um bom indicativo de produção de um país) e os atendentes conhecem a situação, por isso as filas são longas e demoradas demonstrando a sua solidariedade com os clientes. Infelizmente muita gente não compreende e se exaspera profundamente com a lendária morosidade das filas, esquecendo-se que graças a elas, evitam expor-se a situações potencialmente perigosas como a possibilidade de serem seqüestrados na sua própria casa.
Recentemente comecei a perceber que elas também são importantes fontes de informação sobre os serviços de determinado local. Por exemplo, a da padaria diz que o pão até não é tão bom, mas é barato, a do banco, quanto maior a fila, melhor a política de crédito, já a do hospital, trás duas mensagem bem claras: se estiver às moscas é um péssimo hospital, ou caríssimo; se estiver superlotado, é ótimo para pobres. É bom lembrar que não há uma melhor que a do talho, entre uma e outra lição de anatomia para donas de casa, você ainda se deleita com as melhores estórias da vizinhança, por outro lado, nenhuma é tão irritante quanto a de uma repartição pública. Tu esperas por horas a fio e quando chega a tua vez sempre falta mais um documento, uma assinatura ou a boa disposição da funcionária, que é sempre gorda, rabugenta e de inteligência medíocre, mas que se acha a gema.
Engraçada mesmo é a fila do chapeleiro, e do provador da loja de roupas, todos esperando desesperados pela sua vez de despir-se. Poucas são tão disputadas como a do bar, sobretudo se o barman for uma mulher (os donos de bares descobriram isso a que tempos).
Tem também as filas sazonais, por elas podemos dizer em que dia do mês estamos, como as do salário, as das vésperas do natal, páscoa e dia das mães, ou a eleitoral, que no Brasil quer dizer que estamos em época da copa.

Obs.: Filas possíveis é uma reedição da crônica Filas, porque vos quero, publicada aqui neste blog em junho de 2010.

terça-feira, 5 de março de 2013

Mente Cyborgue


Hoje meu amigo entrou injuriado em minha casa, peidando impropérios. Perguntei o que se passava e ele respondeu-me com um desapontamento incompreensível:
- A tecnologia meu caro, tem tudo a ver com essa abelhuda, que nos convenceu ser essencial para nossa miserável existência.
Eu, sem entender muito bem, mas mordendo-me de vontade de ouvi-lo desenterrar mais uma de suas delirantes conjecturas, fiz aquela cara exclamativa, de propósito. Encorajando-o a continuar.
- Então meu dileto amigo, é a mesma história e as pessoa, na verdade o mundo todo, negligencia isso. Continuando cada um com sua vida, como se de um pachorrento domingo se tratasse, enquanto as máquinas nos subjugam cooptando até aquilo que tínhamos como última barreira entre nós e elas, - nossa subjetividade. Transformando-nos em interfaces de um programa qualquer, de poluídas redes sociais, condicionando-nos a ser palhaços de um palco de espetacularizações; às quais aderimos com o maior prazer deixando que parâmetros de computador redefinam nossas relações com o mundo. Enquanto Delegam a nós mesmos a tarefa de nos convencermos com a simplicidade do argumento do encurtamento das distâncias e de uma suspeitosa tele-existência, sem parar para refletirmos, que o custo disto é mais alto do que a construção de uma nova forma de vida na qual as pessoas emprestam parte de sua subjetividade ao mundo virtual, virtualizando não apenas suas relações de trabalho, afetivas, culturais, etc., mas a si mesmos, transformando-nos em parte integrada à eletromagnética e às tecnologia informacionais e produzindo uma perigosa superexposição das nossas intimidades na web, incentivada pela promessa mentirosa de notoriedade e reconhecimento. Ficando assim esquecidos todos aqueles rituais de um tempo em que a vida ainda era experimentada no cara com a rua, na insegurança quotidiana de um dia de trabalho, no contágio despropositado de emoções e nos flertes maliciosos que casados e solteiros trocam nos transportes públicos.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

A estética do parecer


A maior parte de nós tem a certeza de que vivemos na época do ter e não mais do ser, pois, antes o importante era ser, seus vizinhos, amigos e parentes, esperavam conhecê-lo pelo caráter e personalidade. As pessoas eram descritas por fórmulas como: o fulano é confiável e prestativo; o beltrano é um cara abnegado, esforçado e competente e a cicrana é honesta, inteligente e diligente, por isso, as referências a respeito de alguém podiam ser atestadas facilmente pela informalidade do boca-a-boca daqueles que conheciam ou conviviam com tal pessoa.
Depois deste tempo surgiu a época do ter, quando as coisas começaram a tornar-se difíceis. As pessoas passaram a ser  medidas pelo que tinham, suas posses determinavam quem você era, muito mais do que seus valores, virtudes e caráter; aliás, o significado de todas estas palavras foi redefinido de modos que elas passaram a estar associadas ao quanto você podia comprar, as coisas materiais passaram a ser elas mesmas, vistas como valores, nossos carros, relógios, celulares e outras bugigangas de que tanto nos orgulhávamos, passaram a conter em si mesmas, nossos valores morais, que em um passado não muito distante, somente podiam ser investidos nas pessoas. Então, começamos a comprar e reproduzir absurdos incríveis: ternos passaram a indicar respeitabilidade, responsabilidade e competência, a marca do carro indicava prosperidade, ou uma vida bem sucedida, o tamanho do escritório falava sobre nosso espírito empreendedor e a abastança dos móveis  mostrava nosso alto sentido estético. Mas as coisas não pararam por aí, pois, como se não fosse possível piorar, estabelecemos a sociedade do Parecer Ter, onde mais importante ainda do que o Ser ou o Ter, é o Parecer. Viver das aparências tornou-se um exercício obrigatório e a opulência que antes já fazia parte do nosso dicionário de vícios, ganhou uma visibilidade ainda maior, deixou os recantos tímidos de uma vida hipocritamente humilde para ocupar a sala principal, com a diferença de que agora já ninguém mais precisava de ter coisa alguma, apenas de descobrir o esquema do parecer.
A infeliz massa de gente desinformada acreditava, que havia começado uma época revolucionária, pois, acenava-se para eles com a ilusão de oportunidades iguais, prometendo-se-lhes (mentirosamente),  a opulência, que antes era privilégio apenas de alguns. Inventaram-se assim os cartões de crédito, as hipotecas, os empréstimos à prazo, os cheques especiais, os pagamentos parcelados com e sem juros e toda uma gama de  artifícios, que serviam para alimentar esta ilusão. Como consequência, “honra” tornou-se uma palavra obsoleta sendo  imediatamente substituída por “garantia”, que tornou-se por sua vez, um negócio lucrativo gerido principalmente por aquelas instituições, que causaram essa inflação de vidas aparentes, porque para parecer ter é preciso oferecer garantias para as mesmas pessoas a quem se pagam taxas pesadas para continuar a ostentar essa fantasia ofensiva.