Parece-me importante começar este
texto apresentando-me como farei a seguir, pois de alguma forma é a partir de
um ponto de vista contaminado por essa identidade de imigrante, que o escrevo.
Sou
africano, nascido em Angola e negro, desde cedo soube
que era africano, porém nem sempre estive conscientizado deste fato e, por
conseguinte nunca antes tinha precisado reafirmar também, que Sou negro!
Isto apenas aconteceu ao chegar ao
Brasil, ou seja, por mais paradoxal que pareça – descobri-me efetivamente negro no Brasil, quando comecei a ter que
lidar com questionamentos como:
O
que você acha sobre racismo? Em África tem preconceito contra negros? Você já
sofreu preconceito? O que você acha sobre os negros brasileiros?
Bom, muitos diriam que essas perguntas
não são um problema e eu concordaria se não fosse pelo fato de que, antes nunca
me vi diante de tantos questionamentos deste tipo, o que me levou a pensar
comigo mesmo:
- Talvez as pessoas estivessem
procurando saber algo mais. Alguma coisa estava me escapando.
De fato eu sabia que era negro tanto
quanto sabia que era de sexo masculino, africano, angolano, magro, etc., eu
sabia na medida em que, quando olhava para o espelho me reconhecia naquele
reflexo narcísico, eu sabia na medida em que minha nacionalidade aparecia em
meus documentos e porque também tinha aprendido na escola que as pessoas podiam
ser classificadas pelo tom de pele e o meu me colocaria entre os negros, ou
seja, eu sabia pelo menos cognoscitivamente, que ser “eu” em alguns lugares representaria muito mais do que um tom de
pele menos pálido, uma cor exótica. Faltava-me apenas o conhecimento real, a
experiência e essa eu vim tê-la no Brasil.
Aqui aprendi, por exemplo, que esse
tal exotismo galga rapidamente para indesejáveis estereótipos, e que essa
aparentemente simples diferença de pigmentação é carregada de um simbolismo
histórico muito fortemente impregnado numa inexorável experiência de negritude,
que mescla discriminação racial com pobreza, exclusão, morte prematura e outras
injustiças sociais. Contudo, demorou um pouco, até que eu começasse a seguir as
pistas do que seria, afinal esse preconceito de que tanto me falavam, ou perguntavam.
Recém-chegado e com uma vivência cultural
totalmente diferente, era-me difícil ler para além daquilo que eu achava (erroneamente)
ser muitas vezes, um pretenso vitimismo dos negros. Pena foi não ter naquela
altura alguém que me mandasse calar a boca, enquanto circulava por espaços onde
espraiava minha ignorância sobre a experiência do racismo no Brasil, sem
contestações ou críticas, tanto de amigos brancos quanto de amigos negros.
Os primeiros, talvez porque sentissem que
não tinham muito a dizer a respeito e de alguma forma, sendo eu negro, devia
saber do que estava a falar, sem esquecer que minha especialização em assuntos
negros começava ao que parece no continente que era o berço da negritude,
portanto, quem mais qualificado para falar sobre o assunto (claro que eu estava
enganado!) do que alguém que nasceu e cresceu “negro” num continente quase
exclusivamente de negros?
Os segundos, talvez não se sentissem tão
à-vontade para contestar um negro, mesmo reconhecendo que eu não tinha vivido
as mesmas situações, ou quem sabe também eles viam alguma verdade na minha
convicção fabricada sob um contexto social distante do brasileiro? O problema é
que continuei destilando esses juízos descontextualizados por mais algum tempo,
antes de começar a questionar essas minhas convicções, o que só aconteceu
gradualmente, à medida que conhecia e conversava mais e mais com negros e
brancos nascidos e criados no Brasil.
Apenas nestas circunstâncias tive pela
primeira vez a oportunidade de compreender, por exemplo, a simbologia por
detrás das referências que ouvia sendo feitas com frequência aos negros, transformadas
pelo tempo em gírias esvaziadas de sua carga histórica e apenas ali, fui levado
a olhar pela primeira vez de forma desnaturalizante e crítica, minha identidade
racial e étnica, ou seja, tive a oportunidade de olhar através e para além da
minha própria ignorância.
Como se pode imaginar, foi também
nesta altura, que tive um vislumbre das piadas racistas como um mecanismo de
reforço dos estereótipos e preconceitos e “eureka!”, - percebi a “falha” na
minha educação, que me fazia olhar tão ingenuamente para o racismo. Fui preto
toda a vida, porém, não tinha aprendido a ler as mesmas piadas da forma como
elas realmente deveriam parecer, aliás, em muitos casos eu também dava gargalhadas
sem perceber que estava sendo um palhaço duas vezes: (1) por ser o alvo da
piadinha e (2) por estar ingenuamente participando da mesma, rindo sem perceber
que minha negritude era o verdadeiro motivo do riso.
É claro que levou algum tempo até
perceber que as piadas de que eu havia participado muitas vezes, eram muito
mais do que simples piadas, mas que em vez disso retroalimentavam
comportamentos que levavam à criação de duas sociedades com experiências
contrastantemente diferentes (opressora e oprimida) muitas vezes sem que essa
opressão fosse percebida como tal, pois a cordialidade maquiava de forma
perversa os mecanismos de deslegitimação do sofrimento dos que se sentiam
oprimidos, fazendo com que estes últimos às vezes participassem “voluntariamente”
do jogo, sob pena de serem vistos como exagerados, mal-humorados, ou coisas
piores, reproduzindo uma vivência subalternizada de uma cultura minorizada,
marginalizada e sem quase nenhum tipo de reconhecimento social e político.
Atualmente continuo a aprender sobre o
assunto e tenho descoberto aos poucos que ser negro no Brasil, é resistir diariamente ao medo de não conseguir
forças suficientes para continuar;
É um teste quotidiano de sobrevivência,
de reconstruções sucessivas da autoestima e uma vontade incomensurável de ser livre e viver em uma sociedade
igualitária, sem precisar de prescindir de sua ascendência cultural;
É reivindicar o direito à diferença,
mais do que à igualdade, por que foi justamente a ilusão de igualdade natural,
que levou ao escamoteamento criminoso de outras culturas que não fossem aquela
que se desejava hegemônica.
Imagem: https://www.google.com.br/search?q=ser+negro,+africa&espv=2&biw=1242&bih=606&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0CAYQ_AUoAWoVChMI-Pir6-7eyAIVA4qQCh1AZwOb#tbm=isch&q=negritude&imgrc=hS43tWZoASjU2M%3A