Desta vez gostaria de problematizar o pronunciamento da Ministra da
Educação, no qual supostamente coloca na conta dos professores a
responsabilidade pela falta de qualidade do ensino em Angola.
Acho que já surgiram pronunciamentos dos mais diversos inclusive que
colocam em análise aspectos estruturais que não dependem dos professores, tais
como: a falta de merenda escolar, as aulas debaixo de árvores, a falta de
transporte para os alunos, os salários criminosamente incompatíveis, entre
outros.
Para início de conversa, é importante dizer que não se trata de apresentar
a ministra como uma pessoa incompetente, por seu discurso, o que tornaria muito
fácil e superficial a crítica, diminuindo inclusive sua relativa importância. Trata-se,
sobretudo de fazer um esforço para olhar além do discurso e saltarmos para uma seara,
na qual consigamos entender que o problema não é o discurso em si mesmo, mas a
ideologia por detrás do discurso, ou seja, se o discurso da ministra fosse uma
cebola, o meu convite seria não para simplesmente falarmos mal da cebola, mas retirarmos
as capas da mesma, uma à uma até descobrirmos o que esconde.
Este seria em si mesmo um exercício de crítica. Não uma simples e
irresponsável, mas uma que tenta compreender um fenômeno mais amplo.
O que nos aponta de facto
este discurso.
Em minha opinião, ele aponta para uma forma de pensar muito específica e
premeditada. Aponta para uma concepção ideológica de educação.
O que é uma ideologia? Uma forma de pensar, uma idéia que orienta
práticas individuais e colectivas (inclusive do estado).
Portanto, a Ministra estava (inadvertidamente ou não) a apontar-nos para
a concepção ideológica da nossa educação.
Mas aqui surge outro questionamento:
Que ideologia é essa e quais suas consequências para a
educação em Angola?
Vou tentar responder à estas duas questões e quem sabe ajudar a desnudar a
armadilha que o discurso esconde.
Quanto à primeira questão
podemos responder o seguinte:
Simplificando, o neoliberalismo
é a ideologia econômica segundo a qual o estado deve isentar-se de participar na
economia.
Sobre as suas consequências para educação podemos dizer que a principal e
mais criminosa é a deserção e
desresponsabilização do Estado, algo que ocorre no caso de forma tanto
implícita quanto explícita.
Como vemos, sem querer a Ministra deu-nos uma pista explícita, pois ao
transferir para os professores a culpa pelo insucesso escolar, ela demonstrou
de modo inequívoco a intenção de deserção do Estado e é dessa forma que sugiro
que se deva compreender o discurso. Não vamos esquecer que o pronunciamento do
titular de um cargo público é salvo raras excepções, a posição oficial do Estado
sobre a matéria. Destarte, a ministra estava a informar-nos sobre algo que já
ocorre desde antes da Reforma Curricular e que encaminha de modo progressivo,
sistemático e consistente a educação angolana à uma precarização de difícil
retorno.
Para ajudar a sustentar
este argumento, vamos analisar algumas evidências:
As comparticipações
Estas são talvez um dos
exemplos mais paradigmáticos da deserção do Estado. Com as comparticipações
fica introduzida uma prática que transfere para os encarregados de educação a
responsabilidade de funcionamento da escola, deixando para o Estado apenas a
tarefa de contratar os professores e remunerá-los.
Tarefas como a construção de novas salas, a manutenção das estruturas e em
alguns casos até mesmo a contratação de pessoal menos qualificado (vigilantes e
pessoal da limpeza) também ficam dependentes do valor arrecadado pelas
comparticipações, criando um precedente para a criação de contratos
pecaminosamente precários.
As falhas que ocorrem na gestão passam a ser atribuídas não mais à
problemas relacionados à gestão central, mas à inépcia dos directores, a sua
falta de iniciativa, ou pior, à má-vontade dos pais que não pagam as
comparticipações.
Formação permanente
Apesar de a formação ter
sido incluída nos itens de avaliação dos docentes, não estão criados mecanismos
que estimulem os docentes a fazê-lo, além de que nos últimos anos a formação
também perdeu a importância do ponto de vista da sua utilização imediata como critério
de promoção, já que a única formação válida é aquela que confere algum grau
acadêmico, excluindo-se portanto, as especializações, cursos de curta duração e
outros que não conferem um grau de escolaridade (ensino médio, bacharelado,
licienciatura, etc). Deste modo, a busca de superação torna-se sem serventia ao
mesmo tempo que se obriga o professor a superar-se às suas próprias custas.
Superexploração do professor pelo voluntariado
obrigatório
A tônica mais marcante da
educação em Angola tanto nos discursos dos professores, quanto socialmente é a
ideia do amor à camisola. O professor que trabalha por amor à camisola, amaria
de tal maneira a mesma, que não se importaria de dar aulas independentemente
das condições. Seu valor estaria na capacidade de resistir heroicamente à um
salário ofensivamente baixo, salas de aula superlotadas, escolas sem
bibliotecas, com pouqíssimas condições, ou mesmo a falta quase total de
condições. Ele ainda assim, teria que gostar da profissão, para não ser chamado
de incompetente e antipatriota. O professor ver-se-ia obrigado a tomar parte de
actividades para as quais não foi contratado e nem sequer é pago, configurando
em alguns casos desvio de função.
Junta-se a isso o trabalho fora do horário normal de expediente (sem
remuneração) levando para casa provas por corrigir, chamadas escritas e
trabalhos dos alunos, ao prepararem os seus planos de aulas, que implicam em
várias horas de estudo (nunca contabilizadas), etc. Aliás, já é prática
corrente em muitas escolas a planificação aos sábados mesmo sendo dia de
descanso.
Neste cenário, o Estado já despersonalizado, por se confundir mais com
uma empresa, do que com um ente público, abandona a sua responsabilidade de
assegurar sua real finalidade social e tornando-se num complexo concorrente das
corporações empresariais.
O indivíduo representado aqui pelo professor (aluno, pais, médico, etc.)
passa a ter que assumir a responsabilidade de garantir por conta própria a
qualidade da educação, o atendimento médico (no caso dos médicos), o saneamento
dos seus bairros, a segurança da sua comunidade, enquanto um governo sequestrado
pela ideologia neoliberal impingida pelo FMI, Banco Mundial e outras agências,
deserta de suas actividades fim.
Assim, a educação segue o mesmo caminho das empresas públicas que estão
na lista da privatização. É verdade que a educação, por ser um serviço,
presta-se menos à mercantilização, o que não significa que não possa ser
transacionada da mesma forma que têm sido as empresas públicas.
Deveríamos agradecer à ministra, porque sem querer ela abriu o jogo
sobre o fim da nossa educação. Reduzi-la à uma mercadoria vendida por empresas
públicas (estado) e privadas.
Ops, desculpa, mas parece que isso já acontece!