Sartjie Baartman também conhecida
como Vênus Hotentote foi uma mulher tornada escrava na África do Sul pela
família Baartman. Em 1810 foi levada para a Europa pelo irmão do seu escravocrata
com a promessa de fama (isso deve parecer familiar) e dinheiro, que seriam supostamente
ganhos pela sua exposição.
E o espetáculo? Seu corpo.
Sartjie foi descrita pelos europeus como uma mulher de “nádegas enormes e elevadas, como traço étnico, gordura sobre as nádegas
em vez da barriga, lábios vaginais muito desenvolvidos e chamados por isso de
cortina ou bandeja da vergonha [muito significativo]”.
Sartjie foi exposta em Londres onde
aparecia em shows, acorrentada e nua, apenas com a genitália coberta. Era obrigada
a caminhar de quatro para ressaltar a sua bunda e de alguma forma tornar mais
evidente sua suposta natureza animalesca.
A plateia podia apalpá-la fazendo um
pagamento extra.
O show levantou algumas questões
sobre se estava a ser explorada, mas ela disse aos juízes que fazia aquilo de
livre vontade, por isso o tribunal arquivou o caso apesar das inúmeras contradicções.
Em 1814 ela foi vendida à um Francês
domador de animais que a obrigou a exibir-se completamente nua mostrando até a
genitália, ela também passou a ser usada em festas para a diversão dos convivas
bêbados.
Seu corpo foi usado por todos, desde
bêbedos, à pintores e cientistas interessados em estudá-la. Sartjie terminou
seus dias, como prostituta e alcoólatra. Mesmo na morte não teve descanso, seu
corpo foi dissecado publicamente e sua vagina conservada em formol de 1815 à
2002, quando Sartjie foi finalmente devolvida à África do Sul para ser
enterrada.
O corpo de Sartjie passou a ser usado
como padrão para todas as mulheres africanas, ou seja, depois dela os
cientistas passaram a defender que as mulheres africanas tinham nádegas grandes,
eram sexualmente selvagens (daí também vem a ideia de um desejo insaciável das
mulheres negras), além de outros vitupérios.
Mas o que a história
de Sartjie tem a ver com as jardadas?
De um lado, as jardadas reproduzem (conscientemente
ou não) um estereótipo que foi criado na época de Sartjie Baartman para
estabelecer a fronteira entre os padrões estéticos africanos e ocidentais e que
não dizem respeito apenas ao tamanho da bunda, mas às expectativas sexuais que
se reproduzem em relação às africanas de forma geral como sexualmente quentes e/ou
insaciáveis.
De outro lado, alimentam a ilusão (enganadas
tal como foi Sartjie) de que suas escolhas são de facto autônomas, não
percebendo a perniciosidade desta suposta autonomia, ou seja, que estando elas
inseridas numa sociedade que transforma as relações sociais em mercadoria, as
suas decisões serão (salvo excepções) orientadas no sentido de tornar seus
corpos lucrativos para a indústria em termos de satisfação do
desejo masculino e na manutenção de certo padrão estético. Ou seja, a sua expectativa
de aceitação passa não por poderem ser vistas como são (mulheres reais), mas pela
ilusão do que se-lhes vende como o que podem ser (poderosas, que leia-se aqui:
Jardadas). Fazem-se aceites oferecendo-se como mercadoria e neste caso
mercadoria do desejo masculino.
Para as Sartjie Baartman de hoje, a
vida não é nem um pouco mais fácil do que era no passado, pelo contrário, a
falta de aprofundamento na compreensão da cadeia complexa do momento actual,
que interliga capitalismo-patriarcado-neoliberalismo dificulta a uns e outros
compreender seu papel na manutenção das formas de objectificação das mulheres
de forma geral e das jardadas particularmente.
O facto de existirem mulheres (caso
das artistas e figuras públicas) tendo consciência do fenômeno da objectificação e que
tentam capitalizar por isso seu corpo de modo consciente, não significa
necessariamente que elas não sejam também vítimas de um espetáculo circense
bizarro e atroz que as suga para depois as descartar (por velhice, porque
ficaram críticas demais, porque ficaram despudoradas demais, etc.).
As jardadas são as Sartjie de hoje,
porque caíram nas armadilhas da promessa de fama e riqueza a troco da exposição
de uma bunda e de tudo o que ela simbolicamente representa numa sociedade patriarcal
e capitalista.
Post script: O filme Vênus hotentote é um bom lembrete das atrocidades sofridas por Sartjie.
Imagens retiradas de: https://www.ivoox.com/pt/escalofriante-5x02-sarah-baartman-la-sordida-audios-mp3_rf_14208642_1.html e
https://www.google.com/url?sa=i&source=images&cd=&ved=2ahUKEwjG17674_ffAhVDXxoKHdSyDeIQjRx6BAgBEAU&url=https%3A%2F%2Fwww.revistaplaneta.com.br%2Fsaartjie-a-venus-hotentote%2F&psig=AOvVaw1xnmVLk0-dw4Enf2lG9bAB&ust=1547915898508753