sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

NÓS MULHERES E A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA HISTÓRICA


María Villarreal 
Doutoranda do curso de Ciência Política na Universidade Complutense de Madrid
Refletir e pensar sobre a nossa história pessoal e coletiva, implica problematizar e questionar as aparências. Nesse sentido, o que somos hoje nós as mulheres, as nossas conquistas e reivindicações, têm a ver com o nosso passado ou é simplesmente fruto do acaso ou das concessões de alguém? A resposta parece óbvia, mas não é. Em relação aos direitos e condições do gênero feminino, a história oficial apresenta uma versão dos fatos que nos induz a ver como algo garantido desde sempre o acesso ao estudo, ao voto, e a outros direitos, tipo escolher como e com quem queremos viver, ou mesmo, uma maternidade desejada. Lamentavelmente alguns desses direitos ainda são um ideal para boa parte da população feminina, mas ao mesmo tempo, constituem um patrimônio de incalculável valor para uma parcela significativa de mulheres apesar das dificuldades e questionamentos contínuos.

            A minha e a história de todas nós mulheres é a soma de lutas, reclamações e demandas expressadas de forma individual e coletiva; tradicionalmente ridiculizadas e reprimidas duramente por quem controla o poder e define os bons e os maus costumes das épocas. Até antes do surgimento oficial do feminismo como heterogeneidade de movimentos e posturas que reivindicam a libertação, a dignidade e o respeito dos direitos das mulheres enquanto seres humanos, houve pessoas (mulheres principalmente, mas também homens) que se manifestaram a favor da nossa causa, pedindo o acesso à educação, afirmando a igualdade entre homens e mulheres, demonstrando a existência de problemas aparentemente “invisíveis” ou trabalhando para erradicar a violência que ameaça as nossas vidas. Hoje, relembrando toda essa história é preciso reconhecer o valor e a coragem de todas essas pessoas e dizer: OBRIGADA. Parte do que somos e temos atualmente é graças a el@s, e neste sentido, honrar a sua memória implica conhecer a história da luta pelos nossos direitos e contribuir a valorizar essa herança, defendendo aquilo que nos pertence por valor e dignidade.
A este respeito, campanhas recentes como #PrimeiroAssédio ou #MeuAmigoSecreto problematizaram vivências quotidianas e comportamentos machistas e intolerantes, muitas vezes naturalizados, considerados secundários, pouco importantes ou parte da nossa cultura. Essas campanhas são mais do que bem-vindas. Elas constituem um ato de presença e um chamado de atenção que nos permite parar para pensar que o sonho de construir uma sociedade mais justa ainda não acabou. As formas de discriminação e violência continuam existindo para nós mulheres e se agravam quando falamos de mulheres negras, lésbicas, bi ou transexuais. Por outro lado, o recente projeto de lei 5069, de autoria do presidente da Câmara dos Deputados Eduardo Cunha do PMDB constitui um atentado aos nossos direitos, criminalizando a opção das mulheres de interromper a própria gravidez em casos legalmente reconhecidos e prevendo penas para quem induz, instiga ou auxilia as mulheres nesse processo. Mais uma vez a reação dos movimentos de mulheres foi significativa e sob o lema “Pílula fica, Cunha sai”, milhares de mulheres em diversas cidades do Brasil saíram às ruas para manifestar o próprio desacordo com a proposta e a necessidade de preservar os seus direitos. Através deste tipo de ações e da nossa afirmação cotidiana, todas nós somos e podemos ser forças vivas e ativas de mudança social. O trabalho pela vida plena e os direitos de todas ainda não acabou e em nome de quem doou as suas vidas e energias para nos permitir ser pessoas integrais, precisamos dar continuidade à utopia, ajudando a fazer desse mundo um lugar mais justo e melhor para tod@s.



sábado, 14 de novembro de 2015

Eu, mulher negra, “(r)existo”


Karen Y'Almeida, graduada em Letras 
(Unesp, campus de Assis)
(R)existência”
Quilombo meu minha morada,
corpo meu, minha morada.

Nele unifico minha ancestralidade,

nele identifico e sou identificada,

corpo cicatrizado, pele marcada.


Quando pequena, lembro-me de não encontrar personagens negros nos livros literários da escola, nem com cabelos trançados, nem com os cabelos úmidos como frequentemente ficavam ajeitados os meus pra não armar e ficar feio, porque sabe como é cabelo ruim é igual ladrão, se não tá preso tá armado!
Minha mãe dizia que tinha feito curso de cabelereiro pra poder cuidar do cabelo das três filhas. Acho que a primeira vez que alisei os meus foi lá pelos 10 anos, não sei... só sei que achava lindo, apesar do incomodo de dormir de bobes e mais tarde pelos puxões de cabelo da escova, depois ferro e então chapinha. Na escola, um pouco mais tarde, lembro-me das aulas de História, nas quais o tema "Escravidão" aparecia em requintados quadros que retratavam cenas de humilhação sofridas pelos negros africanos. Num plano subjetivo, pareciam estar em uma parede, empoeirados por restarem ali desde sempre para que os descendentes dos escravos escravizados sempre se lembrassem do seu devido lugar. Claro que não percebia as aulas com olhar crítico, o que eu sentia ao ver as pinturas de Rugendas e Debret, charges ou ouvir o professor pronunciar escravo negro era um desconforto sem saber o porquê. Vergonha, pode ser que seja esse o nome ou pode ser que ainda não tenha encontrado um. Não queria parecer com nenhum dos escravos escravizados, nem com Zumbi, que parecia ser o único esperto ali na historinha que ela contava.
Quando alguém se referia a mim como negra até pouco tempo atrás eu sentia o mesmo desconforto de quando menina. Como se essa categoria não me pertencesse, estivesse bem longe de mim, num quadro empoeirado em alguma parede para que pessoas pretas se lembrassem do seu lugar.
Porque eu? Eu sou morena, meu pai é quase branco, ah! A minha avó é branca... meu cabelo com ferro até fica liso, meu nariz com pregador pode afinar: – Você tem que limpar o nariz assim filha, pra não achatar, dizia minha mãe. Quem sabe assim aquele principezinho da escola até pode olhar pra mim e não para minha amiga branca, loira, linda e tudo o que eu queria ser? Embora ela quisesse ser uma das meninas da revista e das novelas, que pareciam com ela, só que esqueléticas. Lembro-me de ter visto uma vez uma menina “morena” de cabelos alisados em uma revista sobre adolescência e puberdade, é!
Nas novelas eu não me encontrava não, mas via muito a minha mãe. Mulher negra, foi passista quando morávamos na capital (ou moravam, eu nem tinha nascido ainda), amamentou filho que não era dela e trabalhou de empregada na casa de duas famílias brancas muito bondosas quando mudamos pro interior... Sabe como é, pobres e pretos na Babilônia se puder cair fora cedo evita estatística. Era uma casa de manhã e outra à tarde, os patrões sempre gostaram muito dela – não é difícil não, d. minha mãe é a melhor pessoa que conheci nesse mundo – gostavam tanto que muitas vezes ganhávamos algumas sobras de comida pra nossa janta também. Nessa época eu era bolsista na escola. Pra sua irmã eu consegui ajeitar os dentes, pra você eu consegui o colégio, ela dizia. Lembro-me das festas de aniversário  nas quais eu nunca podia ir por não termos dinheiro, mas uma vez eu emburrei com minha mãe e fiquei sem conversar com ela por não poder ir a uma festa de 15 anos. Ela ficou tão mal que a patroa comprou a sandália pra que eu pudesse ir. Então, eu fiquei mal. E esbravejei, em silêncio, estar naquela escola onde eu me sentia envergonhada por ter uma mãe empregada, por chegar sempre a pé, por ser a diferente, ser o patinho feio, embora de coleguismo eu não pudesse reclamar porque sempre fui moça prosadeira.
Até que chegou uma época que eu comecei a perceber que o meu corpo despertava mais interesse dos meninos do que qualquer coisa que houvesse dentro ou fora da minha cabeça, não demorou pra eu entender que eu poderia ser querida por alguém tanto quanto as meninas brancas, quem sabe até por aquele galãzinho da escola, porque enfim algo chamava atenção em mim. E percebi que na televisão também era assim... então era normal, né? E aí que um pouco antes de entrar na graduação, antes de ir embora, eu conheci um principezinho que se interessou por mim. Um dia fomos pra casa dele, uma bela de uma casa, diga-se de passagem. Lembro que me disse
Eu sempre quis ficar com uma mulher morena assim. Estávamos ambos nas primeiras vezes então e... the end.
Talvez a vida universitária fosse diferente e agora eu nem passava ferro, era chapinha mesmo! E continuei a perceber que meu corpo era mais interessante do que qualquer coisa que eu dissesse ou parecesse, embora à noite fosse boa, à luz do dia eu nunca era. Muito diferente do universo quencaracolismundi.wordpress.com circundava algumas amigas, diga-se de passagem que muitas vezes quis parecer com a maioria delas. Pensando bem, acho que passei a maior parte da minha vida querendo ser ou parecer outra pessoa que não fosse comigo, minhas irmãs, minha mãe, nem ninguém que tivesse a mesma cor, lábios, olhos, cabelos semelhantes aos meus. Ser preta é pra sempre, eu pensava. Poderia esconder o que fosse de qualquer pessoa, mas a minha cor que lembrava aqueles do passado empoeirado nos quadros da parede eu nunca poderia esconder de ninguém. Lembro que certa época um rapaz negro quis ficar comigo e a resposta foi um não redondo, primeiro porque nunca havia olhado um cara negro, não me interessava, claro. Se eu nem me achava bonita, porque acharia ele então? Não sei nem porque falou comigo. E eu estava interessada em outro princepezinho... Na época nem me dava conta o quão invisível eram os rapazes negros para mim e o quão recorrente era o meu interesse pelos príncipes.
Hoje algumas dessas lembranças podem ser acessadas por mim. Hoje esse texto pode ser escrito sem receios, engasgos, vergonha. Isso porque ao longo da minha caminhada por entre diferentes lugares, pessoas e leituras possibilitaram-me o mergulho em mim mesma para compreender porque algo estava faltando – eu mesma.
As vivências com práticas culturais afro-brasileiras e o interesse crescente pelo feminismo contribuíram muito para esse processo de redescoberta e após 24 anos eu finalmente pude falar para alguém como é ser negra num mundo branco. Hoje, grito ao vento. Comecei a perceber então que ser uma preta que fala é bem melhor do que permanecer muda, submissa, alienada de mim. Devagar eu percebia que “o sempre vou ser preta” significava o meu estar no mundo e que se essa significação enfim irrompesse pra mim não haveria volta. Agora, sobre o feminismo hoje compreendo que não me contempla se não me posiciono dentro do feminismo negro, pois enquanto mulher eu sofro a opressão sexista, enquanto negra sou oprimida pelos racistas. Respiro. Pois então, a violência é dupla.
Sobre o processo pelo qual passei gosto sempre de trazer luz à fabulosa acadêmica e militante ímpar Lélia Gonzalez: a gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se negra é uma conquista. E foi por aí que descasquei a tez, despi a máscara… e parece tão simples, tão óbvio o pensamento hoje que não sei como todas as vivências se misturaram e chegaram a essa arrebentação de mim, sei da libertação.
Empretecer-se, empoderar-se enquanto mulher negra que sofre por ser o completo avesso ao padrão estético imposto, que sofre por não ter lugar reservado fora dos estereótipos cotidianamente afirmados pela mídia, pela escola, pelos salários mais baixos reservados no mercado, pelos filhos jogados nas valas, pelos amigos reprodutores do racismo, pela minha reprodução do racismo, a mulher que sofre sem muitas vezes nem compreender o porquê.
 Só que claro que não foi fácil, cresci querendo ser o que não era por aprender que nunca fui boa o suficiente em nada, a TV me ensinou, a escola me mostrou e minha família não semeou porque com eles também foi assim, e com quem veio antes, mas os mais anteriores ainda foram ensinados no corte da carne e no tronco. O passado dos meus começou a ser uma presença cada vez mais latente, a minha figura no espelho me incomodava muito e percebi que minha estética, meu corpo, pelo qual fui negada tantas e tantas vezes, o qual eu mesmo neguei é a minha maior ligação com a história dos meus ancestrais — a cultura é inevitavelmente solúvel, modificável no tempo, a matéria não, o corpo bruto resiste!

terça-feira, 10 de novembro de 2015

A pizza, o green card e os "mal-entendidos": sobre ser latina nos Estados Unidos

Míriam M. C. Garrido, doutorando do curso de História na
Unesp, campus de Assis
Como mulher e brasileira que adora viajar já presenciei muitos tipos de preconceitos e situações constrangedoras. Bom, ok, não vamos “dourar a pílula”, vivenciei em muitas das minhas viagens preconceitos e assédios que me constrangiam e me deixavam impotente diante de um homem que exercia seu poder de opressão por ser homem e autóctone no espaço onde eu era apenas uma turista.
Uma vez fui a Fortaleza com meu irmão mais novo. Toda vez que pedia indicações às pessoas nas ruas as respostas eram direcionadas ao meu irmão (homem) e não a mim que havia feito a pergunta. Ali aprendi que os homens devem nos guiar nas viagens. Ou quando fui a  Lisboa e um senhor simplesmente me agarrou pela cintura e me suspendeu porque havia sorrido para mim e eu retornei o sorriso. Com pedidos agressivos de “onde é seu hotel” aprendi que além de guiada por homens eu também não podia sorrir nas ruas.
Mas agora me vejo numa situação totalmente nova. Estudante de doutorado estou morando nos Estados Unidos, uma vez que, minha pesquisa sobre militância negra brasileira tem revelado afinidades com os movimentos negros estadunidenses das décadas de 1960 e 1970. Aqui aprendi que sou mulher, latina, brasileira e outras coisas de que não me havia apercebido.
O título do texto parece estranho não? Estranho ou não ele ajuda a explicar um dos maiores estranhamentos que tive nas primeiras semanas da minha chegada aos E.U.A. Na primeira casa onde morei conheci um homem americano (40 anos), que sabia da minha condição de estrangeira obviamente. Dizendo-se interessado em me mostrar onde eu poderia comprar comida e outras coisas necessárias à minha adaptação ele se prontificou em levar-me ao mercado mais próximo, e coisas semelhantes.
Ótimo, ajuda sempre é bem vinda e as pessoas que moram a mais tempo em determinadas cidades sempre sabem os melhores lugares e os mais baratos.
No terceiro dia que o rapaz foi a casa (o que no Brasil poderia ser considerado uma república estudantil) ele perguntou se eu tinha fome e que ali próximo havia uma pizzaria. Porquê não? Eu fui... Durante o caminho para atravessar a avenida ele segurou a minha mão (ok, deve ser porque a avenida era movimentada, mas em seguida eu desvencilhei minha mão), depois me disse que era para eu me sentir segura, pois agora tinha alguém para olhar por mim (opa, com 30 anos, divorciada, me sustentando sozinha a mais ou menos 10 anos, nunca precisei de alguém “para olhar por mim”, por que eu precisaria agora?), e a conversa foi ao clímax quando ele sugeriu que talvez eu pudesse ficar definitivamente nos Estados Unidos, pois, ele casaria comigo vialibilizando assim meu pedido do green card.
“Pera”, como assim? Em que momento eu disse àquele homem que eu desejava morar nos Estados Unidos por tempo indeterminado ou me tornar “cidadã americana”? em que momento eu dei a entender que era uma pessoa (mulher) frágil que necessitava de cuidados de outrem? Em que momento eu permiti certas aproximações físicas que ele tentava mais enfaticamente após revelar as verdadeiras razões para a sua “prestatibilidade”?
Agora penso que as indagações que me passaram à mente naquele momento muito se assemelham às vítimas de violências que se sentem culpadas pelas ações do outro... Quantas mulheres saem às ruas todos os dias para trabalhar e estudar e são interrompidas – de inúmeras formas – por homens que acreditam estar exercendo seu direito de dominar uma outra pessoa? Quantas mulheres sofrem violências físicas e psicológicas (na família, na escola, no emprego) todos os dias? E o pior de tudo isso, quantas de nós mulheres não começamos a nos questionar “E se eu tivesse ido por uma rua mais movimentada? E se eu estivesse usando calças? Será que deixei ele pensar que podia fazer isso comigo?”. Não, isso não é justo comigo.
Pelo que depois me explicaram as brasileiras intercambistas, ao encontrá-lo pela terceira vez e aceitar uma pizza eu estava aceitando o “date”, ou seja, estava saindo com aquele homem. Novamente eu me senti impotente na minha condição de mulher e turista, mas agora também brasileira, que aos olhos do estadunidense é a tradução da busca pelo american dream. Só que eu não estava interessada em nada daquilo. Nem ter um “date” nem me tornar cidadã estadunidense. Repito, minha primeira reação foi pensar em que momento eu deixei implícitas essas coisas para aquele homem, mas com o tempo percebi que nada do que eu fiz ou disse indicava nenhum daqueles pré conceitos estabelecidos por aquele indivíduo.
Infelizmente grande parcela dos imigrantes brasileiros ainda vêem o casamento como uma forma de entrar para a sociedade estadunidense e garantir assim maior acesso ao bem estar social, aos bens de consumo e a elevação do status quo. Isso me foi explicitado por várias outras brasileiras em diferentes ocasiões. Mas em que medida essas mulheres também não são vítimas inconscientes de um estereótipo lançados sobre nós mulheres, latinas e brasileiras?
O texto não tem uma conclusão, eu ainda vivo aqui e estou tentando aprender a conviver com a frieza americana e a coisificação do corpo da mulher (latina de uma forma geral), mas com o texto proponho uma reflexão: até quando vamos nos sentir culpadas pelos “santos assédios de cada dia”?

domingo, 8 de novembro de 2015

A objetificação da mulher lésbica

Maria Eugenia, estudante do
curso de Psicologia, Unesp,
campus de Assis
Desde que nos conhecemos por gente, nós mulheres temos nossos corpos, desejos e sexualidades domados e limitados com imposições sociais, deturpadas noções de certo e errado, renegados por preceitos religiosos que muitas vezes nem fazem parte das nossas crenças pessoais.  É nos imposto o exercício da feminilidade, da docilidade, da ternura. Os “modos de menina” sempre faz com que nossa liberdade seja pouco a pouco tolhida, ainda nos verdes anos, diante de orientações daqueles que, teoricamente, só querem o nosso bem.

No início da adolescência, nos vemos diante de mais uma imposição, dessa vez a heterossexualidade compulsória. No entanto, muitas vezes o desejo, esse cujas correntes sociais não são capazes de prender e brota feito um rio que não se pode represar, não corresponde com as expectativas sociais.  Daí então se inicia uma sequência de questões e conflitos, desde a autoafirmação até a objetificação sexual.

Nosso corpo é visto como a serviço do masculino e o mesmo se supõe quanto ao nosso desejo. E quando nele não cabe o prazer do homem, eles o julgam incompleto. Das tantas violências sofridas, a objetificação da mulher lésbica é uma das mais agressivas. Cerceia nossos desejos, nossa expressão de afeto, nosso espaço e nossos direitos.

Nem nosso corpo, nem nosso desejo e nem nossas relações estão a serviço do prazer masculino. É direito da mulher lésbica ter sua relação reconhecida, respeitada e não objetificada em espaço algum. O corpo da mulher é dela e somente de quem ela deseja que seja. Não estamos e nem estaremos a mercê do desejo de quem não nos agrada.

domingo, 25 de outubro de 2015

Imigrantes africanos e a ressignificação da experiência de negritude

Parece-me importante começar este texto apresentando-me como farei a seguir, pois de alguma forma é a partir de um ponto de vista contaminado por essa identidade de imigrante, que o escrevo.
Sou africano, nascido em Angola e negro, desde cedo soube que era africano, porém nem sempre estive conscientizado deste fato e, por conseguinte nunca antes tinha precisado reafirmar também, que Sou negro!
Isto apenas aconteceu ao chegar ao Brasil, ou seja, por mais paradoxal que pareça – descobri-me efetivamente negro no Brasil, quando comecei a ter que lidar com questionamentos como:
O que você acha sobre racismo? Em África tem preconceito contra negros? Você já sofreu preconceito? O que você acha sobre os negros brasileiros?
Bom, muitos diriam que essas perguntas não são um problema e eu concordaria se não fosse pelo fato de que, antes nunca me vi diante de tantos questionamentos deste tipo, o que me levou a pensar comigo mesmo:
- Talvez as pessoas estivessem procurando saber algo mais. Alguma coisa estava me escapando.
De fato eu sabia que era negro tanto quanto sabia que era de sexo masculino, africano, angolano, magro, etc., eu sabia na medida em que, quando olhava para o espelho me reconhecia naquele reflexo narcísico, eu sabia na medida em que minha nacionalidade aparecia em meus documentos e porque também tinha aprendido na escola que as pessoas podiam ser classificadas pelo tom de pele e o meu me colocaria entre os negros, ou seja, eu sabia pelo menos cognoscitivamente, que ser “eu” em alguns lugares representaria muito mais do que um tom de pele menos pálido, uma cor exótica. Faltava-me apenas o conhecimento real, a experiência e essa eu vim tê-la no Brasil.
Aqui aprendi, por exemplo, que esse tal exotismo galga rapidamente para indesejáveis estereótipos, e que essa aparentemente simples diferença de pigmentação é carregada de um simbolismo histórico muito fortemente impregnado numa inexorável experiência de negritude, que mescla discriminação racial com pobreza, exclusão, morte prematura e outras injustiças sociais. Contudo, demorou um pouco, até que eu começasse a seguir as pistas do que seria, afinal esse preconceito de que tanto me falavam, ou perguntavam.
Recém-chegado e com uma vivência cultural totalmente diferente, era-me difícil ler para além daquilo que eu achava (erroneamente) ser muitas vezes, um pretenso vitimismo dos negros. Pena foi não ter naquela altura alguém que me mandasse calar a boca, enquanto circulava por espaços onde espraiava minha ignorância sobre a experiência do racismo no Brasil, sem contestações ou críticas, tanto de amigos brancos quanto de amigos negros.
Os primeiros, talvez porque sentissem que não tinham muito a dizer a respeito e de alguma forma, sendo eu negro, devia saber do que estava a falar, sem esquecer que minha especialização em assuntos negros começava ao que parece no continente que era o berço da negritude, portanto, quem mais qualificado para falar sobre o assunto (claro que eu estava enganado!) do que alguém que nasceu e cresceu “negro” num continente quase exclusivamente de negros?
Os segundos, talvez não se sentissem tão à-vontade para contestar um negro, mesmo reconhecendo que eu não tinha vivido as mesmas situações, ou quem sabe também eles viam alguma verdade na minha convicção fabricada sob um contexto social distante do brasileiro? O problema é que continuei destilando esses juízos descontextualizados por mais algum tempo, antes de começar a questionar essas minhas convicções, o que só aconteceu gradualmente, à medida que conhecia e conversava mais e mais com negros e brancos nascidos e criados no Brasil.
Apenas nestas circunstâncias tive pela primeira vez a oportunidade de compreender, por exemplo, a simbologia por detrás das referências que ouvia sendo feitas com frequência aos negros, transformadas pelo tempo em gírias esvaziadas de sua carga histórica e apenas ali, fui levado a olhar pela primeira vez de forma desnaturalizante e crítica, minha identidade racial e étnica, ou seja, tive a oportunidade de olhar através e para além da minha própria ignorância.
Como se pode imaginar, foi também nesta altura, que tive um vislumbre das piadas racistas como um mecanismo de reforço dos estereótipos e preconceitos e “eureka!”, - percebi a “falha” na minha educação, que me fazia olhar tão ingenuamente para o racismo. Fui preto toda a vida, porém, não tinha aprendido a ler as mesmas piadas da forma como elas realmente deveriam parecer, aliás, em muitos casos eu também dava gargalhadas sem perceber que estava sendo um palhaço duas vezes: (1) por ser o alvo da piadinha e (2) por estar ingenuamente participando da mesma, rindo sem perceber que minha negritude era o verdadeiro motivo do riso.
É claro que levou algum tempo até perceber que as piadas de que eu havia participado muitas vezes, eram muito mais do que simples piadas, mas que em vez disso retroalimentavam comportamentos que levavam à criação de duas sociedades com experiências contrastantemente diferentes (opressora e oprimida) muitas vezes sem que essa opressão fosse percebida como tal, pois a cordialidade maquiava de forma perversa os mecanismos de deslegitimação do sofrimento dos que se sentiam oprimidos, fazendo com que estes últimos às vezes participassem “voluntariamente” do jogo, sob pena de serem vistos como exagerados, mal-humorados, ou coisas piores, reproduzindo uma vivência subalternizada de uma cultura minorizada, marginalizada e sem quase nenhum tipo de reconhecimento social e político.
Atualmente continuo a aprender sobre o assunto e tenho descoberto aos poucos que ser negro no Brasil, é resistir diariamente ao medo de não conseguir forças suficientes para continuar;
É um teste quotidiano de sobrevivência, de reconstruções sucessivas da autoestima e uma vontade incomensurável  de ser livre e viver em uma sociedade igualitária, sem precisar de prescindir de sua ascendência cultural;

É reivindicar o direito à diferença, mais do que à igualdade, por que foi justamente a ilusão de igualdade natural, que levou ao escamoteamento criminoso de outras culturas que não fossem aquela que se desejava hegemônica. 

Imagem: https://www.google.com.br/search?q=ser+negro,+africa&espv=2&biw=1242&bih=606&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0CAYQ_AUoAWoVChMI-Pir6-7eyAIVA4qQCh1AZwOb#tbm=isch&q=negritude&imgrc=hS43tWZoASjU2M%3A

domingo, 11 de outubro de 2015

Amiguinho negro de estimação



Estou tentando há algum tempo rascunhar um texto em pudesse refletir um pouco sobre algo que se tem tornado para mim, cada vez mais incômodo.
O discursinho de que não sou preconceituoso, porque tenho um amigo oprimido!
Nos dias correntes, os infelizes usuários deste argumento têm a dupla surpresa de, por um lado, terem que lidar com uma rapidez quase indesejável da propagação de suas energúmenas ações, e por outro, com o crescimento da porção da sociedade, que não mais se indigna em silêncio, mas chama a atenção para os comentários e atitudes despropositados e irresponsáveis que somos forçados a ouvir muitas vezes de pessoas, de quem se espera o mínimo de bom senso.
Somos obrigados a sentir o incômodo antecipado de frases clichês do tipo:
Como eu posso ser racista? Eu até tenho um amigo negro!
Imagina se eu sou racista, eu tenho uma amiga negra e adoro o cabelo dela!
Não sou homofóbico coisa nenhuma. Vou pra festas gays, e um dos meus melhores amigos é gay!
Que é isso, adoro a comunidade gay!
Estes argumentos são usados de forma recorrente por pessoas que acabam visadas na mídia como racistas, homofóbicos, ou por qualquer outra forma de preconceito. Eles imaginam (supondo que seja pura ingenuidade) que ter um amigo negro, ou gay é prova inequívoca de que não são preconceituosos. E aproveitam-se do fato de terem tropeçado na vida, acidentalmente em algum negro para oferecer sua relação com este, como prova de que não podem ser racistas. A preguiça de usar seus neurônios, provavelmente ocupados em provar como suas relações interpessoais são racialmente democráticas, contradizem-se com uma propaganda altamente desrespeitosa da imagem do suposto amigo, transformando-o numa espécie de amiguinho de estimação, uma apólice para os casos de acusação de racismo, ou homofobia, conforme a situação.
Para estes seria no mínimo interessante ler a poesia de Elisa Lucinda (Mulata exportação), para entenderem que explorar a integridade do amiguinho já submetido à várias injustiças e desigualdades estruturantes desta sociedade, não é menos racista, ou homofóbico muito pelo contrário. Talvez fosse muito mais sensato, nestes casos, entender que: Você é racista – só não sabe disso ainda (Túlio Custódio) e tirar fotos com negros não é uma boa forma de diminuir o seu racismo, ou pior, sua estupidez e ignorância (acredite, é possível piorar!).
E como sempre o “destino” nos oferece algumas pérolas intragáveis, a da vez vem por meio de uma fotografia de um rapaz da Banda Fly, publicada por uma fã, que surge depois do mesmo ter sido repudiado por seu comentário racista na Revista Atrevida e como se não bastasse este comentário a fanpage da banda administrada por fãs decidiu adotar para os seus infinitos minutos de irresponsabilidade, um bebé negro para justificar sua suposta índole não-racista. Esta foto levanta sérias questões sobre o que se passa com esse rapaz, com a banda e com o gestor ou gestora daquele perfil, que para condimentar mais ainda tal atrevimento, vem com a seguinte legenda: “Beem Racista Hein?!.”
Esta/este fã, visivelmente ainda em desenvolvimento, esqueceu-se convenientemente (quem sabe?) de ter ao menos a consideração de apresentar a criança, ou seja, posta a foto, sem dizer o nome do seu “amiguinho negro”, deixando clara a “sua preocupação antiracista”  (continuo a torcer para que seja só ingenuidade das pessoas envolvidas), despersonalizando totalmente a criança.
Ela não é nada mais do que um simples adereço na fotografia do moço, que na sua cabeça, deve achar que deu ao bebé a possibilidade de ser um pouco famoso por ter posado com alguém, que claramente não se preocupou em considerar a integridade de um Ser que infelizmente nem tem meios de se defender e muito menos a possibilidade de dizer não! Àquele lugarzinho de animal de estimação (os pais com certeza terão algo a dizer).
A fotografia leva-nos a questionar  se não seria apenas um oportunismo de quem faz a gestão do perfil, porque infelizmente com ela a única coisa que se conseguiu foi expor irresponsavelmente uma criança, que nada tem a ver com a falta de discernimento das pessoas envolvidas.
E aproveitando para problematizar a legenda que a acompanha eu diria: “Não é menos racista do que foi o comentário!”
P.S.: De maneira alguma quero dizer que brancos não podem ter amigos negros e vice-versa, apenas trato de trazer para discussão o uso de amigo que fazem parte de minorias, ou maiorias minorizadas (negros, gays, lésbicas, transsexuais, etc.) para argumentar que não somos preconceituosos. Mais importante do que ostentar esses amigos é dispôr-se a discutir sobre como esses preconceitos precisam de ser desconstruídos diariamente por todos nós.

Publicado originalmente no portal Geledés em 09 de Outubro de 2015 neste link: http://www.geledes.org.br/amiguinho-negro-de-estimacao-tao-racista-quanto-seu-comentario/#gs.i16NBPE



sexta-feira, 9 de outubro de 2015

A injustiça por detrás dos nomes de família


Os nomes são parte importante de nossa identidade é por eles que somos conhecidos, ou apresentados ao mundo e aos amigos. O acesso aos vários direitos coletivos e individuais de que podemos dispor dependem em primeiro lugar, do reconhecimento de uma identidade civil, registro de um nome, ou seja, temos todos direito à um nome, pois ele nos identifica e individualiza. Curiosamente, ele pode ser também um marcador de nossa condição sócio-econômica.
Lembro-me que desde pequeno, qu sempre que era apresentado por alguém que não fossem os meus pais, não se fazia esperar muito até vir o previsível:
- Ele é filho do Sicrano, neto do Beltrano, sobrinho do Cicrano, que é cunhado do Fulano. Os sobrenomes operavam de maneira interessante uma mediação omnipresente nas mais diversas situações. Não raras vezes, quando precisávamos de tratar algum documento, era só chegar e dizer, sou o Cicrano filho do Beltrano para ter os problemas solucionados.
Enfim, com o tempo aprendemos que os nossos nomes próprios sempre pedem um sobrenome, pois tê-lo reconhecido, dá-te a possibilidade de circular mais livremente por vários espaços. Ele diz não apenas sobre quem somos, mas essencialmente, sobre a que clã pertencemos, de que família somos originários e por conseguinte, que fóruns nos são acessíveis e quais não estão abertos para o nosso pobre ou insigne sobrenome.
Todos já ouvimos aquele comentário aparentemente inofensivo:  
- Ele é da família Beltrana!
Talvez não nos preocupemos tanto com o fato, de o mesmo, estar carregado de sentidos e valores específicos, que são evocados ao se referir a tal família. Assim, as profissões pelas quais se conhece a família, as desgraças recentes e antigas,  os esqueletos no armário, conhecidos ou apenas supostos, todos eles vêm empacotados nesses comentários. Aliás não é raro depois desse reconhecimento preliminar começarem os questionamentos sobre parentes e várias outras fofocas, que supúnhamos, que só eram conhecidas pela família. É também interessante observar, que uma vez que fica provado a tua pertença àquela família, é como se toda a tua personalidade pudesse ser descortinada apenas por “pertencer” à mesma. Claro que a desilusão também é companheira quando se supõe que você é tão diferente de todos que possuem aquele sobrenome.
É fácil perceber, que toda essa trama no qual o nome está produz obscuras oportunidades econômicas (entendendo aqui o econômico da maneira mais ampla possível), ou seja, uma verdadeira capitalização do nome.
É claro que numa época em que tornamos facilmente tudo em mercadoria e valores de troca, esse salto é simplesmente um detalhe. Na política, na economia, nas artes e em outros espaços ele se torna tão importante quanto, ou muito mais do que a competência efetiva do dono do nome. Sua experiência quase sempre vai ser antecedida ou atestada (conforme o caso) pelo nome e ai de quem tem aquele sobrenome desconhecido, falido ou desacreditado.
Ao que parece, essa capitalização se sustenta na crença (Infundada), que ao herdar o nome, herdamos também todas as qualidades dos seus ascendentes, criando-se dessa forma, sindicatos ou reservas de espaços sociais e políticos baseados nos sobrenomes, surgindo equívocos despropositados. Fazendo com que alimentados por essa ilusão de transmissão genética de habilidades, que muitas vezes são sociais, filhos deliram ao ponto de achar que o sobrenome vai ajudá-lo a cantar com a maestria e limpidez da mãe, do pai, ou dos avós, desconsiderando os anos de experiência e todo tempo despendido em estudo e trabalho, confundindo a popularidade eventualmente alcançada, por causa do nome, com “talento de família”, ou jovens empresários, que têm o cinismo de alardear sobre sua sagacidade no primeiro negócio montado com empréstimos familiares generosos, ou aspirantes à política, que supõe ingenuamente, que a carreira dos pais, por exemplo, é adquirida por testamento.
Talvez seja justamente aqui onde podemos ver a cara mais perversa do uso dos nomes para garantir alguns privilégios. Algumas vezes um sobrenome se torna tão influente, que começa a parecer a própria alma do negócio, ou seja, ele se transforma num ingrediente tão importante para os negócios (sejam eles de que natureza forem), quando o próprio negócio. Ele se torna num livre trânsito para toda a espécie de ações lícitas e ilícitas, um objeto de desejo. As pessoas passam a esperar por uma oportunidade de usá-lo a seu favor através de artifícios dos mais diversos. As oportunidades que o nome permite, justificariam até as fraudes para usá-lo, mesmo que apenas temporariamente. Tornando-o o ônus do crime, enquanto se transfigura ele mesmo no próprio crime, por que já não é mais um simples nome. A essa altura tornou-se uma chave mestra, que aparentemente abre portas ilimitadas de oportunidades para os mais diversos oportunistas.

Enquanto isso, os pobres como sempre continuam a fazer a única coisa para a qual a sociedade criminosamente os tornou vocacionados, a reprodução de sobrenomes que trazem uma história de injustiças e falta de oportunidades, ou pior, a sua supressão de sua memória, sempre que produzem em alguma família miserável a aspiração por uma vida mais digna, invisibilizando desejos e tornando impossíveis os sonhos da maioria.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O perigo de desejar demais a democracia

No dia 21 de Junho deste ano foram presos 15 jovens angolanos pelas autoridades do país, sob a alegação de que os mesmos estavam a preparar um Golpe de Estado. Como prova foram apresentados alguns materiais, que seriam supostamente usados na preparação de uma palestra na qual, diz-se, seria discutido o tema: Como derrubar um ditador. Segundo a polícia, essa apreensão é resultante de um trabalho da inteligência angolana, contudo, o risível nesta situação é que uma das provas é a lista de um hipotético governo de salvação nacional, criada nas redes sociais pelo jurista Albano Pedro.
O suposto crime começou quando os jovens decidiram dar prosseguimento ao exercício de construção da lista sugerindo nomes para o hipotético governo, porém, o que ficou por dizer, e que se tenta esconder do povo é: Seu crime não foi aquele pelo qual eles foram presos (que para todos os efeitos era o exercício do direito à liberdade de expressão), seu verdadeiro crime foi pensar autonomamente, refletir sobre a situação social e política da sua terra, tecendo críticas às injustiças sociais colocadas à descoberto pelo modo como vive a maioria pobre da população, a ausência de políticas públicas efetivas, a violação dos direitos humanos, a expatriação da dignidade de seus concidadãos, etc., seu verdadeiro crime foi “desejar demais a democracia”.
O mesmo Governo que apregoa espalhafatosamente ser democrático, para quem ainda perde tempo ouvindo os habituais discursos falastrões, que sinalizam claramente o delírio de um Estado Autocrático, acabou dando um tiro no próprio pé, deslegitimando assim, os argumentos de seus retratores mais fiéis, pois agora vai ser mais difícil, autoproclamar-se  “livre e democrático”, quando a solução contra opiniões dissidentes seja a privação arbitrária das liberdades individuais como acontece no momento.
Democracia e liberdade de expressão, diante de uma ação  como esta não passam de falácias descontextualizadas, ou que servem apenas para como dizemos em Angola “fintar” (driblar) a comunidade internacional. E como sempre, lá estão também as organizações que se autodenominam representantes da comunidade civil legitimando ações claramente criminosas. Se por ignorância pura, ou por que elas foram sequestrados por promessas corruptoras, de todo modo, apenas demonstram a fragilidade ética e a pobreza de espírito desta pseudo sociedade civil.
Não esqueçamos, porém, que este sonho de liberdade, é perigosamente contagioso e epidêmico e uma vez que as pessoas acordem para ele, torna-se cada vez mais difícil de sufocá-lo!
Foi assim nas lutas pela independência, de que muitos desses atuais algozes participaram, ou será que se esqueceram nossos atuais “heróis”, que houve um tempo em que eles próprios eram esses jovens “rebeldes”, “desocupados” e acima de tudo, sonhadores?
Pois bem, aporrinharam e acorrentaram os filhos e agora, como se não bastasse é a vez das mães, que reivindicavam apenas o direito de ter seus filhos de volta. Considerando que as acusações contra eles eram incertas e o estado parecia negar-lhes maliciosamente um tratamento que tivesse a mesma justeza dos seus sonhos.

As mães dos 15 angolanos que já sofrem com os achaques da incerteza causada pela prisão dos filhos foram igualmente privadas do seu direito constitucional de manifestarem-se e quando decidiram não se calar, foram brutalmente espancadas, ameaçadas fisicamente inclusive com uso de brigadas caninas. Seu tratamento não deferiu daquele que muitos regimes autoritários reservam aos seus cidadãos, deixando claro que a única igualdade que oferecem é pelo tratamento degradante para todos quantos não façam parte da elite, ou seja, a maioria da população, categoria marginal na qual enquadraram as mães dos 15, que representam verdadeiramente todas as mães angolanas. Essas sim representam as mulheres angolanas muito mais que aquelas que se manifestam apenas para contrapor o direito de opor-se a um poder hoje hegemônico no nosso querido país.

Esta Crônica é um tributo aos 15 jovens e vários outros angolanos que foram presos por tentaram manifestar sua opinião em relação ao regime no poder.
Imagem: http://m.cdn.blog.hu/in/inspired/image/gyerekek-alvohelyei-a-vilag-minden-tajarol/19.jpg

terça-feira, 12 de maio de 2015

Faceländia

Quando eu era bem mais novo  (não que seja um octogenário ainda que pareça ao dizer isso) eu sabia de dois tipos de amigos. – Os melhores amigos e os mais ou menos.
Os primeiros eram aqueles com quem fazia mil e uma travessuras, aprontávamos juntos pela vizinhança, nos revezávamos na arte de apedrejar os telhados das nossas próprias casas como uma espécie de pacto de ingenuidade, brigávamos na areia vermelha de terra não asfaltada do nosso bairro, que decidia sobre ser urbano, industrializado e violento ou continuar rural e bucólico, dando-nos desta forma, a oportunidade  de explorarmos os açudes da região, mergulhar nos lagos de água parada, que se formavam no tempo de chuva, provocar a cachorrada da vizinhança e fazer aquele rodízio, pelas casas, na hora do almoço. Mesmo sabendo como as mães irritavam-se com isso.
Era com esses amigos, que formávamos a nossa pequena e às vezes promissora gangue, que travava desafios infantis com a vida, ocupava os terrenos baldios com bolas de trapo improvisadas, dividindo abraços e sorrisos cotidianos, enfim, brincávamos e nos divertíamos sendo eternamente felizes, um dia de cada vez.
Já os amigos mais ou menos eram os conhecidos do bairro, mas que não faziam parte da gangue. Podiam ser vizinhos ou colegas lá da escola, rapazes que conhecíamos porque cruzávamos os mesmos caminhos. De vez em quando tínhamos um dedo de prosa e até cumprimentávamos quando nos encontrávamos, mesmo que apenas por boa educação. Sabíamos os nomes e os apelidos e quem eram os seus melhores amigos. Às vezes aproximávamo-nos a tal ponto que eles também poderiam vir a ser futuros amigos, mas enquanto isso continuavam na zona do “mais ou menos”.
Fomos crescendo, observando como o avanço das transformações tecnológicas, levava nossa pequena comunidade a inadvertidamente optar pela industrialização e nós, vendo-nos obrigados a substituir antigas amizades físicas pelas virtuais, - inventando um novo tipo de amigo: o das redes sociais. Migramos de umas às outras (orkut, hi5, my space, entre outras) até que chegamos finalmente ao facebook e com isso, é claro foi-nos apresentado o simpático “amigo do face”.
Este é um tipo particularmente interessante e especial, afinal, para início de conversa ele é bem mais acessível e fácil de conhecer. Um simples pedido e ele aceita, aparentemente não discrimina. Tu já nem precisas de gostar das mesmas coisas, mesmas brincadeiras, músicas e filmes, na verdade, ele nem se importa muito com o que pensas e quando importar-se, provavelmente irá bloqueá-lo, excluí-lo, ou desfazer a amizade em vez de conversar. Contudo, como nunca chegamos a conversar muito, isto nem se torna constrangedor e mais a mais, tu tanto quanto ele estão pouco se importando.
O mais interessante mesmo é que o amigo do face não precisa sê-lo na vida real, evitando assim o desconforto de partilhar aspectos importantes da vida um do outro, de trocar confidências sobre as vergonhas pessoais e desastres íntimos, ou  mais importante, perder tempo a confortarem-se em situações catastróficas, criando a ilusão de uma amizade sem sobressaltos. Aliás todas essas ações se tornaram desnecessárias no momento em que se descobriu que várias das manifestações humanas podem agora ser compactadas na famosa curtida, ou nos fofos emotions. Uma revolução no campo da demonstração de afetos e emoções ao que parece.
Portanto, uma das vantagens dessa amizade é não precisarmos dar atenção a amigo nenhum, pois ali ninguém parece importar-se em servir apenas como confete de um fantasioso perfil, ajudando a aumentar nossa popularidade com um placar que marca o crescimento do número de amigos que nos esforçamos desesperadamente por saber absolutamente nada!
Quando muito e se bater uma solidão (não saudade, porque vocês nem se conhecem de fato), damos um oi pelo bate papo na lista inteira de amigos, só pra ver se alguém daquela longa e fantasmagórica lista se digne a responder. Algumas vezes fazemos o esforço de comentar algo nas publicações que aparecem aleatoriamente em nossa linha do tempo, ou nos divertimos partilhando postagens de terceiros passando a impressão de que as tínhamos lido quando apenas demos uma rápida vista de olhos nos comentários tão superficiais quanto as relações que cultivamos com os nossos amigos virtuais.
Se aparece uma fotografia nova, mesmo não lembrando da última conversa que tivesse ido para além dos monossilábicos sim, não, ok, ou das siglas quase indecifráveis, de tão originais (tb, tvz, vc, ptp, nda, td, kkk, rsrs, hhh, entre outros) com o dono do perfil, não perdemos ainda assim a oportunidade de elogiá-la. Se surge um evento que parece importante na vida da pessoa, desfiamos sem medo de sermos apanhados traídos por nossa admiração corrosivamente artificial pela grandiosidade desse nosso amigo virtual.

Inventamos assim um novo amigo, mas ao que parece as formas pelas quais nos relacionamos hoje com esses amigos, não preenche os requisitos do que pensávamos ser um amigo. Dispensamos os abraços e outras formas de afeto, ou intimidade física e justificamos o uso dessas redes como a necessidade de encurtamento das distâncias, contudo, se chegamos realmente a encurtar as distâncias quanto a esses novos amigos, produzimos um novo tipo de distanciamento com os antigos e verdadeiros amigos, pois transferimo-los para a virtualidade do mundo das redes sociais, tornando cada vez mais assépticos  e robotizados nossos relacionamentos com eles e assim se quisermos voltar a brincar de jogar pedras nos telhados em companhia da velha antiga gangue, terá que ser provavelmente apenas no City Ville.

domingo, 19 de abril de 2015

A respeito das portas e cancelas da vida

Reencontrei recentemente um amigo, que já não via há muito tempo e como é costume nestes casos, começamos a rever nossas lembranças sobre o passado, até que ele me disse o seguinte, com aquele ar simultaneamente nostálgico e  desapontado:
- Tenho a impressão de atualmente nos dedicarmos cada vez menos às pessoas. Parece estarmos a esquecer aos poucos, como é importante cultivar as relações, seja com pessoas próximas, ou qualquer que conheçamos  mesmo que apenas superficialmente. Digo isso pensando por exemplo no vigilante/segurança do trabalho, da faculdade, ou dos outros lugares em que circulamos.
Com frequência já não lembramos dele, tão logo atravessamos a cancela, esquecendo-nos que precisamos da sua atenção ao menos duas vezes ao dia;
- À saída e à entrada!
Ele abre-nos as portas, autoriza nossa passagem e neste sentido, representa ainda que apenas metaforicamente os únicos momentos que iniciam e encerram o ciclo principal de nossas quase sempre sôfregas vidas: nascimento e morte.
Quando abrem simpáticos, nos sentimos felizes por termos recebido naquele pequeno aceno de mão, o reconhecimento de nossas curtas existências, não somos mais invisíveis, graças a eles e isto nos anima a pensar que talvez não o sejamos ao mundo, eles são assim, a mão pela qual alguns mundos nos são abertos ou fechados.
Do mesmo modo, outras pessoas abrem e fecham portas e janelas para nós ao longo da vida, como os enquadramos ou o quanto nos esforçamos por reconhecer sua artífice contribuição, é uma coisa sobre a qual deveríamos pensar vez por outra, pois à medida que crescemos cruzamos por acaso ou propositadamente com outros destes porteiros da vida (irmãs e irmãos, amigas e amigos, companheiros, compadres, primas e primos, namoradas e namorados entre outros), todos a seu modo ajudando a abrir e a fechar infinitas passagens, algumas com maiores dificuldade do que outras, até à altura em que começamos a perceber, que mais importante do que o abre/fecha, são na verdade o caminho e a companhia, que logo nos fazem esquecer como foi doloroso abrir aquela última porta, para nos fixarmos apenas não sensação prazerosa de  fechá-la agora.
Assim, amadurecemos e supostamente passamos a ter uma preocupação maior com nossos parceiros de caminhada, desejando mais a companhia daqueles que andam do nosso lado e nos tratam como iguais e evitando os que sinalizam já desde o início uma obsessão doentia por se colocar sempre à nossa frente, para chamar à si o protagonismo de tão tortuosa jornada, ou porque não é capaz de entender o sentido de se andar de mãos dadas. Afastamos também daqueles que se colocam sempre atrás, evitando responsabilidades maiores, deixando para nós a tarefa ingrata e solitária de desbravar o caminho por ele, oferecendo-lhe respostas à medida que nos segue o rasto de forma covarde.
Enfim, continuamos a caminhar e enquanto tiramos a valiosa lição de que essa andança afinal sempre vai requerer algum tipo de negociação se quisermos companhia e algumas concessões para garantirmos benefícios mais ou menos proporcionais, descobrimos quase por acidente, que pode ser também um processo longo, o que nos obriga a sermos criativos quanto ao que fazer com as pedras que surgem pelo caminho.

Dependendo do otimismo, talvez as usemos para nos divertir, quebrando algumas janelas pelo caminho e neste caso, fazê-lo com alguém, mesmo que isso implique algum tipo de sacrifício, pode ao menos nos garantir boas lembranças para usar como combustível na próxima jornada!