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Karen Y'Almeida, graduada em Letras
(Unesp, campus de Assis)
“(R)existência”
Quilombo meu minha morada,
corpo meu, minha morada.
Nele unifico minha ancestralidade,
nele identifico e sou identificada,
corpo cicatrizado, pele marcada.
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Quando pequena, lembro-me de não encontrar
personagens negros nos livros literários da escola, nem com cabelos trançados,
nem com os cabelos úmidos como frequentemente ficavam ajeitados os meus pra não
armar e ficar feio, porque sabe como é cabelo ruim é igual ladrão, se não tá
preso tá armado!
Minha mãe dizia que tinha feito curso de
cabelereiro pra poder cuidar do cabelo das três filhas. Acho que a primeira vez que alisei os
meus foi lá pelos 10 anos, não sei... só sei que achava lindo, apesar do
incomodo de dormir de bobes e mais tarde pelos puxões de cabelo da escova,
depois ferro e então chapinha. Na escola, um pouco mais tarde, lembro-me das
aulas de História, nas quais o tema "Escravidão" aparecia em
requintados quadros que retratavam cenas de humilhação sofridas pelos negros
africanos. Num plano subjetivo, pareciam estar em uma parede, empoeirados por
restarem ali desde sempre para que os descendentes dos escravos
escravizados sempre se lembrassem do seu devido lugar. Claro que não
percebia as aulas com olhar crítico, o que eu sentia ao ver as pinturas de
Rugendas e Debret, charges ou ouvir o professor pronunciar escravo negro era
um desconforto sem saber o porquê. Vergonha, pode ser que seja esse o nome ou
pode ser que ainda não tenha encontrado um. Não queria parecer com nenhum dos escravos
escravizados, nem com Zumbi, que parecia ser o único esperto ali na historinha
que ela contava.
Quando alguém se referia a mim como negra até
pouco tempo atrás eu sentia o mesmo desconforto de quando menina. Como se essa categoria
não me pertencesse, estivesse bem longe de mim, num quadro
empoeirado em alguma parede para que pessoas pretas se lembrassem do seu lugar.
Porque eu? Eu sou morena, meu pai é quase branco, ah! A minha avó é branca... meu
cabelo com ferro até fica liso, meu nariz com pregador pode afinar: – Você tem que limpar o nariz assim filha,
pra não achatar, dizia minha mãe. Quem
sabe assim aquele principezinho da escola até pode olhar pra mim e não para
minha amiga branca, loira, linda e tudo o que eu queria ser? Embora ela
quisesse ser uma das meninas da revista e das novelas, que pareciam com ela, só
que esqueléticas. Lembro-me de ter visto uma vez uma menina “morena” de cabelos
alisados em uma revista sobre adolescência e puberdade, é!
Nas novelas eu não me encontrava não, mas via
muito a minha mãe. Mulher negra, foi passista quando morávamos na capital (ou
moravam, eu nem tinha nascido ainda), amamentou filho que não era dela e
trabalhou de empregada na casa de duas famílias brancas muito
bondosas quando mudamos pro interior... Sabe como é, pobres e
pretos na Babilônia se puder cair fora cedo evita estatística. Era uma casa de
manhã e outra à tarde, os patrões sempre gostaram muito dela – não é difícil
não, d. minha mãe é a melhor pessoa que conheci nesse mundo – gostavam tanto
que muitas vezes ganhávamos algumas sobras de comida pra nossa janta também.
Nessa época eu era bolsista na escola. – Pra
sua irmã eu consegui ajeitar os dentes,
pra você eu consegui o colégio, ela dizia. Lembro-me das festas de
aniversário nas quais eu nunca podia ir
por não termos dinheiro, mas uma vez eu emburrei com minha mãe e fiquei sem
conversar com ela por não poder ir a uma festa de 15 anos. Ela ficou tão mal
que a patroa comprou a sandália pra que eu pudesse ir. Então, eu fiquei mal. E
esbravejei, em silêncio, estar naquela escola onde eu me sentia envergonhada
por ter uma mãe empregada, por chegar sempre a pé, por ser a diferente, ser o
patinho feio, embora de coleguismo eu não pudesse reclamar porque sempre fui
moça prosadeira.
Até que chegou uma época que eu comecei a
perceber que o meu corpo despertava mais interesse dos meninos do que qualquer
coisa que houvesse dentro ou fora da minha cabeça, não demorou pra eu entender
que eu poderia ser querida por alguém tanto quanto as meninas brancas, quem
sabe até por aquele galãzinho da escola, porque enfim algo chamava atenção em
mim. E percebi que na televisão também era assim... então era normal, né? E aí
que um pouco antes de entrar na graduação, antes de ir embora, eu conheci um
principezinho que se interessou por mim. Um dia fomos pra casa dele, uma bela
de uma casa, diga-se de passagem. Lembro que me disse
–
Eu sempre
quis ficar com uma mulher morena assim. Estávamos ambos nas primeiras vezes então e... the
end.
Talvez a vida universitária fosse diferente e
agora eu nem passava ferro, era chapinha mesmo! E continuei a perceber que meu
corpo era mais interessante do que qualquer coisa que eu dissesse ou parecesse,
embora à noite fosse boa, à luz do dia eu nunca era. Muito diferente do
universo quencaracolismundi.wordpress.com circundava algumas amigas, diga-se de
passagem que muitas vezes quis parecer com a maioria delas. Pensando bem, acho
que passei a maior parte da minha vida querendo ser ou parecer outra pessoa que
não fosse comigo, minhas irmãs, minha mãe, nem ninguém que tivesse a mesma cor,
lábios, olhos, cabelos semelhantes aos meus. Ser preta é pra sempre, eu
pensava. Poderia esconder o que fosse de qualquer pessoa, mas a minha cor que
lembrava aqueles do passado empoeirado nos quadros da parede eu nunca
poderia esconder de ninguém. Lembro que certa época um rapaz negro quis ficar
comigo e a resposta foi um não redondo, primeiro porque nunca havia olhado um
cara negro, não me interessava, claro. Se eu nem me achava bonita, porque
acharia ele então? Não sei nem porque falou comigo. E eu estava interessada em
outro princepezinho... Na época nem me dava conta o quão invisível eram os
rapazes negros para mim e o quão recorrente era o meu interesse pelos príncipes.
Hoje algumas dessas lembranças podem ser
acessadas por mim. Hoje esse texto pode ser escrito sem receios, engasgos,
vergonha. Isso porque ao longo da minha caminhada por entre diferentes lugares,
pessoas e leituras possibilitaram-me o mergulho em mim mesma para compreender
porque algo estava faltando – eu mesma.
As vivências com práticas culturais
afro-brasileiras e o interesse crescente pelo feminismo contribuíram muito para
esse processo de redescoberta e após 24 anos eu finalmente pude falar para
alguém como é ser negra num mundo branco. Hoje, grito ao vento. Comecei a
perceber então que ser uma preta que fala é bem melhor do que permanecer muda,
submissa, alienada de mim. Devagar eu percebia que “o sempre vou ser preta” significava
o meu estar no mundo e que se essa significação enfim irrompesse pra mim não
haveria volta. Agora, sobre o feminismo hoje compreendo que não me contempla se
não me posiciono dentro do feminismo negro, pois enquanto mulher eu sofro a
opressão sexista, enquanto negra sou oprimida pelos racistas. Respiro. Pois
então, a violência é dupla.
Sobre o processo pelo qual passei gosto
sempre de trazer luz à fabulosa acadêmica e militante ímpar Lélia Gonzalez: a
gente nasce preta, mulata, parda, marrom, roxinha dentre outras, mas tornar-se
negra é uma conquista. E foi por aí que descasquei a tez, despi a máscara… e
parece tão simples, tão óbvio o pensamento hoje que não sei como todas as
vivências se misturaram e chegaram a essa arrebentação de mim, sei da libertação.
Empretecer-se, empoderar-se enquanto mulher negra que
sofre por ser o completo avesso ao padrão estético imposto, que sofre por não
ter lugar reservado fora dos estereótipos cotidianamente afirmados pela mídia,
pela escola, pelos salários mais baixos reservados no mercado, pelos filhos
jogados nas valas, pelos amigos reprodutores do racismo, pela minha reprodução
do racismo, a mulher que sofre sem muitas vezes nem compreender o porquê.
Só que claro que não foi fácil, cresci
querendo ser o que não era por aprender que nunca fui boa o suficiente em nada,
a TV me ensinou, a escola me mostrou e minha família não semeou porque com eles
também foi assim, e com quem veio antes, mas os mais anteriores ainda foram
ensinados no corte da carne e no tronco. O passado dos meus começou a ser uma
presença cada vez mais latente, a minha figura no espelho me incomodava muito e
percebi que minha estética, meu corpo, pelo qual fui negada tantas e tantas
vezes, o qual eu mesmo neguei é a minha maior ligação com a história dos meus
ancestrais — a cultura é inevitavelmente solúvel, modificável no tempo, a
matéria não, o corpo bruto resiste!