sexta-feira, 27 de maio de 2011

Não mais que um livro (Ganas de intelectual)

Às vezes quando eu tenho anseios de parecer intelectual aos olhos das pessoas, vou andando com um livro qualquer debaixo dos braços, e de vez em quando se estou em algum lugar em que posso folhear quase desinteressadamente o mesmo, eu aproveito. Seja num autocarro lotado, dividindo aquela cadeira desconfortável com algum vizinho meio adormecido pelos embalos do veículo, ressonando de maneira vergonhosa depois de transformar um cochilo inocente numa soneca que reivindica uma vida melhor e vários direitos supostamente naturais; ou mesmo em pé, apenas apoiado numa daquelas barras exageradamente altas e trocando cariciais involuntárias com outros passageiros nos solavancos constantes, motivados pelo asfalto irregular e paragens propositadamente bruscas dos motoristas, ou ainda em algum parque que escolho enquanto caminho errático nesta estranha cidade já saturada de estrangeiros que dividem as suas maneiras entre um sotaque nativo sofrível que já não deixa saber a sua origem e uma necessidade quase neurótica de afirmarem sua própria identidade. Finjo compreender o que leio, com minha testa franzida de propósito para parecer que não presto atenção ao que se passa à minha volta, evitando que a minha curiosidade por assuntos supérfluos me atrapalhe. Assim, evito ver a moça que quase tem um orgasmo enquanto fala ao telefone, deixando as casadas ruborizadas de vergonha, provocando nas mulheres de meia-idade aquele olhar ufano e nostálgico e nos rapazes uma vontade enorme de se masturbarem de inveja, com a gula transparecer-lhes nos olhares sorrateiros que trocam entre si. Também faço de contas que não ouço as conversas de comadre, que se multiplicam sem a menor preocupação em esconder os detalhes das histórias que trocam nos breves momentos em que velhas conhecidas se cruzam. E alternando sempre com conselhos intuitivos, as conversas das moças que se acham altamente experientes em homens, assessorando as amigas encalhadas ou mal-amadas. Viro as páginas por puro acaso e sem nenhuma necessidade, já que o que leio está nos olhos inchados de cansaço dos passageiros gordos de dificuldades e nas vozes desamparadas, que reclamam ao vento a sua vida difícil de pobre, que precisa de evitar faltas para não emagrecer de maneira impossível o seu mísero salário. E já cansado de fingir, fecho finalmente o livro que infelizmente já não tem nada para me ensinar.

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