domingo, 25 de outubro de 2015

Imigrantes africanos e a ressignificação da experiência de negritude

Parece-me importante começar este texto apresentando-me como farei a seguir, pois de alguma forma é a partir de um ponto de vista contaminado por essa identidade de imigrante, que o escrevo.
Sou africano, nascido em Angola e negro, desde cedo soube que era africano, porém nem sempre estive conscientizado deste fato e, por conseguinte nunca antes tinha precisado reafirmar também, que Sou negro!
Isto apenas aconteceu ao chegar ao Brasil, ou seja, por mais paradoxal que pareça – descobri-me efetivamente negro no Brasil, quando comecei a ter que lidar com questionamentos como:
O que você acha sobre racismo? Em África tem preconceito contra negros? Você já sofreu preconceito? O que você acha sobre os negros brasileiros?
Bom, muitos diriam que essas perguntas não são um problema e eu concordaria se não fosse pelo fato de que, antes nunca me vi diante de tantos questionamentos deste tipo, o que me levou a pensar comigo mesmo:
- Talvez as pessoas estivessem procurando saber algo mais. Alguma coisa estava me escapando.
De fato eu sabia que era negro tanto quanto sabia que era de sexo masculino, africano, angolano, magro, etc., eu sabia na medida em que, quando olhava para o espelho me reconhecia naquele reflexo narcísico, eu sabia na medida em que minha nacionalidade aparecia em meus documentos e porque também tinha aprendido na escola que as pessoas podiam ser classificadas pelo tom de pele e o meu me colocaria entre os negros, ou seja, eu sabia pelo menos cognoscitivamente, que ser “eu” em alguns lugares representaria muito mais do que um tom de pele menos pálido, uma cor exótica. Faltava-me apenas o conhecimento real, a experiência e essa eu vim tê-la no Brasil.
Aqui aprendi, por exemplo, que esse tal exotismo galga rapidamente para indesejáveis estereótipos, e que essa aparentemente simples diferença de pigmentação é carregada de um simbolismo histórico muito fortemente impregnado numa inexorável experiência de negritude, que mescla discriminação racial com pobreza, exclusão, morte prematura e outras injustiças sociais. Contudo, demorou um pouco, até que eu começasse a seguir as pistas do que seria, afinal esse preconceito de que tanto me falavam, ou perguntavam.
Recém-chegado e com uma vivência cultural totalmente diferente, era-me difícil ler para além daquilo que eu achava (erroneamente) ser muitas vezes, um pretenso vitimismo dos negros. Pena foi não ter naquela altura alguém que me mandasse calar a boca, enquanto circulava por espaços onde espraiava minha ignorância sobre a experiência do racismo no Brasil, sem contestações ou críticas, tanto de amigos brancos quanto de amigos negros.
Os primeiros, talvez porque sentissem que não tinham muito a dizer a respeito e de alguma forma, sendo eu negro, devia saber do que estava a falar, sem esquecer que minha especialização em assuntos negros começava ao que parece no continente que era o berço da negritude, portanto, quem mais qualificado para falar sobre o assunto (claro que eu estava enganado!) do que alguém que nasceu e cresceu “negro” num continente quase exclusivamente de negros?
Os segundos, talvez não se sentissem tão à-vontade para contestar um negro, mesmo reconhecendo que eu não tinha vivido as mesmas situações, ou quem sabe também eles viam alguma verdade na minha convicção fabricada sob um contexto social distante do brasileiro? O problema é que continuei destilando esses juízos descontextualizados por mais algum tempo, antes de começar a questionar essas minhas convicções, o que só aconteceu gradualmente, à medida que conhecia e conversava mais e mais com negros e brancos nascidos e criados no Brasil.
Apenas nestas circunstâncias tive pela primeira vez a oportunidade de compreender, por exemplo, a simbologia por detrás das referências que ouvia sendo feitas com frequência aos negros, transformadas pelo tempo em gírias esvaziadas de sua carga histórica e apenas ali, fui levado a olhar pela primeira vez de forma desnaturalizante e crítica, minha identidade racial e étnica, ou seja, tive a oportunidade de olhar através e para além da minha própria ignorância.
Como se pode imaginar, foi também nesta altura, que tive um vislumbre das piadas racistas como um mecanismo de reforço dos estereótipos e preconceitos e “eureka!”, - percebi a “falha” na minha educação, que me fazia olhar tão ingenuamente para o racismo. Fui preto toda a vida, porém, não tinha aprendido a ler as mesmas piadas da forma como elas realmente deveriam parecer, aliás, em muitos casos eu também dava gargalhadas sem perceber que estava sendo um palhaço duas vezes: (1) por ser o alvo da piadinha e (2) por estar ingenuamente participando da mesma, rindo sem perceber que minha negritude era o verdadeiro motivo do riso.
É claro que levou algum tempo até perceber que as piadas de que eu havia participado muitas vezes, eram muito mais do que simples piadas, mas que em vez disso retroalimentavam comportamentos que levavam à criação de duas sociedades com experiências contrastantemente diferentes (opressora e oprimida) muitas vezes sem que essa opressão fosse percebida como tal, pois a cordialidade maquiava de forma perversa os mecanismos de deslegitimação do sofrimento dos que se sentiam oprimidos, fazendo com que estes últimos às vezes participassem “voluntariamente” do jogo, sob pena de serem vistos como exagerados, mal-humorados, ou coisas piores, reproduzindo uma vivência subalternizada de uma cultura minorizada, marginalizada e sem quase nenhum tipo de reconhecimento social e político.
Atualmente continuo a aprender sobre o assunto e tenho descoberto aos poucos que ser negro no Brasil, é resistir diariamente ao medo de não conseguir forças suficientes para continuar;
É um teste quotidiano de sobrevivência, de reconstruções sucessivas da autoestima e uma vontade incomensurável  de ser livre e viver em uma sociedade igualitária, sem precisar de prescindir de sua ascendência cultural;

É reivindicar o direito à diferença, mais do que à igualdade, por que foi justamente a ilusão de igualdade natural, que levou ao escamoteamento criminoso de outras culturas que não fossem aquela que se desejava hegemônica. 

Imagem: https://www.google.com.br/search?q=ser+negro,+africa&espv=2&biw=1242&bih=606&source=lnms&tbm=isch&sa=X&ved=0CAYQ_AUoAWoVChMI-Pir6-7eyAIVA4qQCh1AZwOb#tbm=isch&q=negritude&imgrc=hS43tWZoASjU2M%3A

2 comentários: