sexta-feira, 18 de maio de 2018

E depois a culpa é do Professor!


Desta vez gostaria de problematizar o pronunciamento da Ministra da Educação, no qual supostamente coloca na conta dos professores a responsabilidade pela falta de qualidade do ensino em Angola.
Acho que já surgiram pronunciamentos dos mais diversos inclusive que colocam em análise aspectos estruturais que não dependem dos professores, tais como: a falta de merenda escolar, as aulas debaixo de árvores, a falta de transporte para os alunos, os salários criminosamente incompatíveis, entre outros.
Para início de conversa, é importante dizer que não se trata de apresentar a ministra como uma pessoa incompetente, por seu discurso, o que tornaria muito fácil e superficial a crítica, diminuindo inclusive sua relativa importância. Trata-se, sobretudo de fazer um esforço para olhar além do discurso e saltarmos para uma seara, na qual consigamos entender que o problema não é o discurso em si mesmo, mas a ideologia por detrás do discurso, ou seja, se o discurso da ministra fosse uma cebola, o meu convite seria não para simplesmente falarmos mal da cebola, mas retirarmos as capas da mesma, uma à uma até descobrirmos o que esconde.
Este seria em si mesmo um exercício de crítica. Não uma simples e irresponsável, mas uma que tenta compreender um fenômeno mais amplo.
O que nos aponta de facto este discurso.
Em minha opinião, ele aponta para uma forma de pensar muito específica e premeditada. Aponta para uma concepção ideológica de educação.

O que é uma ideologia? Uma forma de pensar, uma idéia que orienta práticas individuais e colectivas (inclusive do estado).
Portanto, a Ministra estava (inadvertidamente ou não) a apontar-nos para a concepção ideológica da nossa educação.

Mas aqui surge outro questionamento:
Que ideologia é essa e quais suas consequências para a educação em Angola?
Vou tentar responder à estas duas questões e quem sabe ajudar a desnudar a armadilha que o discurso esconde.
Quanto à primeira questão podemos responder o seguinte:
Simplificando, o neoliberalismo é a ideologia econômica segundo a qual o estado deve isentar-se de participar na economia.
Sobre as suas consequências para educação podemos dizer que a principal e mais criminosa é a deserção e desresponsabilização do Estado, algo que ocorre no caso de forma tanto implícita quanto explícita.
Como vemos, sem querer a Ministra deu-nos uma pista explícita, pois ao transferir para os professores a culpa pelo insucesso escolar, ela demonstrou de modo inequívoco a intenção de deserção do Estado e é dessa forma que sugiro que se deva compreender o discurso. Não vamos esquecer que o pronunciamento do titular de um cargo público é salvo raras excepções, a posição oficial do Estado sobre a matéria. Destarte, a ministra estava a informar-nos sobre algo que já ocorre desde antes da Reforma Curricular e que encaminha de modo progressivo, sistemático e consistente a educação angolana à uma precarização de difícil retorno.
Para ajudar a sustentar este argumento, vamos analisar algumas evidências:
As comparticipações
Estas são talvez um dos exemplos mais paradigmáticos da deserção do Estado. Com as comparticipações fica introduzida uma prática que transfere para os encarregados de educação a responsabilidade de funcionamento da escola, deixando para o Estado apenas a tarefa de contratar os professores e remunerá-los.
Tarefas como a construção de novas salas, a manutenção das estruturas e em alguns casos até mesmo a contratação de pessoal menos qualificado (vigilantes e pessoal da limpeza) também ficam dependentes do valor arrecadado pelas comparticipações, criando um precedente para a criação de contratos pecaminosamente precários.
As falhas que ocorrem na gestão passam a ser atribuídas não mais à problemas relacionados à gestão central, mas à inépcia dos directores, a sua falta de iniciativa, ou pior, à má-vontade dos pais que não pagam as comparticipações.

Formação permanente
Apesar de a formação ter sido incluída nos itens de avaliação dos docentes, não estão criados mecanismos que estimulem os docentes a fazê-lo, além de que nos últimos anos a formação também perdeu a importância do ponto de vista da sua utilização imediata como critério de promoção, já que a única formação válida é aquela que confere algum grau acadêmico, excluindo-se portanto, as especializações, cursos de curta duração e outros que não conferem um grau de escolaridade (ensino médio, bacharelado, licienciatura, etc). Deste modo, a busca de superação torna-se sem serventia ao mesmo tempo que se obriga o professor a superar-se às suas próprias custas.

Superexploração do professor pelo voluntariado obrigatório
A tônica mais marcante da educação em Angola tanto nos discursos dos professores, quanto socialmente é a ideia do amor à camisola. O professor que trabalha por amor à camisola, amaria de tal maneira a mesma, que não se importaria de dar aulas independentemente das condições. Seu valor estaria na capacidade de resistir heroicamente à um salário ofensivamente baixo, salas de aula superlotadas, escolas sem bibliotecas, com pouqíssimas condições, ou mesmo a falta quase total de condições. Ele ainda assim, teria que gostar da profissão, para não ser chamado de incompetente e antipatriota. O professor ver-se-ia obrigado a tomar parte de actividades para as quais não foi contratado e nem sequer é pago, configurando em alguns casos desvio de função.
Junta-se a isso o trabalho fora do horário normal de expediente (sem remuneração) levando para casa provas por corrigir, chamadas escritas e trabalhos dos alunos, ao prepararem os seus planos de aulas, que implicam em várias horas de estudo (nunca contabilizadas), etc. Aliás, já é prática corrente em muitas escolas a planificação aos sábados mesmo sendo dia de descanso.
Neste cenário, o Estado já despersonalizado, por se confundir mais com uma empresa, do que com um ente público, abandona a sua responsabilidade de assegurar sua real finalidade social e tornando-se num complexo concorrente das corporações empresariais.
O indivíduo representado aqui pelo professor (aluno, pais, médico, etc.) passa a ter que assumir a responsabilidade de garantir por conta própria a qualidade da educação, o atendimento médico (no caso dos médicos), o saneamento dos seus bairros, a segurança da sua comunidade, enquanto um governo sequestrado pela ideologia neoliberal impingida pelo FMI, Banco Mundial e outras agências, deserta de suas actividades fim.
Assim, a educação segue o mesmo caminho das empresas públicas que estão na lista da privatização. É verdade que a educação, por ser um serviço, presta-se menos à mercantilização, o que não significa que não possa ser transacionada da mesma forma que têm sido as empresas públicas.
Deveríamos agradecer à ministra, porque sem querer ela abriu o jogo sobre o fim da nossa educação. Reduzi-la à uma mercadoria vendida por empresas públicas (estado) e privadas.
Ops, desculpa, mas parece que isso já acontece!

Nenhum comentário:

Postar um comentário