sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Jardadas: as Sartjie Baartman de hoje?


Sartjie Baartman também conhecida como Vênus Hotentote foi uma mulher tornada escrava na África do Sul pela família Baartman. Em 1810 foi levada para a Europa pelo irmão do seu escravocrata com a promessa de fama (isso deve parecer familiar) e dinheiro, que seriam supostamente ganhos pela sua exposição.

E o espetáculo? Seu corpo.

Sartjie foi descrita pelos europeus como uma mulher de “nádegas enormes e elevadas, como traço étnico, gordura sobre as nádegas em vez da barriga, lábios vaginais muito desenvolvidos e chamados por isso de cortina ou bandeja da vergonha [muito significativo]”.


Sartjie foi exposta em Londres onde aparecia em shows, acorrentada e nua, apenas com a genitália coberta. Era obrigada a caminhar de quatro para ressaltar a sua bunda e de alguma forma tornar mais evidente sua suposta natureza animalesca.
A plateia podia apalpá-la fazendo um pagamento extra.
O show levantou algumas questões sobre se estava a ser explorada, mas ela disse aos juízes que fazia aquilo de livre vontade, por isso o tribunal arquivou o caso apesar das inúmeras contradicções.
Em 1814 ela foi vendida à um Francês domador de animais que a obrigou a exibir-se completamente nua mostrando até a genitália, ela também passou a ser usada em festas para a diversão dos convivas bêbados.
Seu corpo foi usado por todos, desde bêbedos, à pintores e cientistas interessados em estudá-la. Sartjie terminou seus dias, como prostituta e alcoólatra. Mesmo na morte não teve descanso, seu corpo foi dissecado publicamente e sua vagina conservada em formol de 1815 à 2002, quando Sartjie foi finalmente devolvida à África do Sul para ser enterrada.
O corpo de Sartjie passou a ser usado como padrão para todas as mulheres africanas, ou seja, depois dela os cientistas passaram a defender que as mulheres africanas tinham nádegas grandes, eram sexualmente selvagens (daí também vem a ideia de um desejo insaciável das mulheres negras), além de outros vitupérios.

Mas o que a história de Sartjie tem a ver com as jardadas?

De um lado, as jardadas reproduzem (conscientemente ou não) um estereótipo que foi criado na época de Sartjie Baartman para estabelecer a fronteira entre os padrões estéticos africanos e ocidentais e que não dizem respeito apenas ao tamanho da bunda, mas às expectativas sexuais que se reproduzem em relação às africanas de forma geral como sexualmente quentes e/ou insaciáveis.
De outro lado, alimentam a ilusão (enganadas tal como foi Sartjie) de que suas escolhas são de facto autônomas, não percebendo a perniciosidade desta suposta autonomia, ou seja, que estando elas inseridas numa sociedade que transforma as relações sociais em mercadoria, as suas decisões serão (salvo excepções) orientadas no sentido de tornar seus corpos lucrativos para a indústria em termos de satisfação do desejo masculino e na manutenção de certo padrão estético. Ou seja, a sua expectativa de aceitação passa não por poderem ser vistas como são (mulheres reais), mas pela ilusão do que se-lhes vende como o que podem ser (poderosas, que leia-se aqui: Jardadas). Fazem-se aceites oferecendo-se como mercadoria e neste caso mercadoria do desejo masculino.
Para as Sartjie Baartman de hoje, a vida não é nem um pouco mais fácil do que era no passado, pelo contrário, a falta de aprofundamento na compreensão da cadeia complexa do momento actual, que interliga capitalismo-patriarcado-neoliberalismo dificulta a uns e outros compreender seu papel na manutenção das formas de objectificação das mulheres de forma geral e das jardadas particularmente.
O facto de existirem mulheres (caso das artistas e figuras públicas) tendo consciência do fenômeno da objectificação e que tentam capitalizar por isso seu corpo de modo consciente, não significa necessariamente que elas não sejam também vítimas de um espetáculo circense bizarro e atroz que as suga para depois as descartar (por velhice, porque ficaram críticas demais, porque ficaram despudoradas demais, etc.).
As jardadas são as Sartjie de hoje, porque caíram nas armadilhas da promessa de fama e riqueza a troco da exposição de uma bunda e de tudo o que ela simbolicamente representa numa sociedade patriarcal e capitalista.
Post script: O filme Vênus hotentote é um bom lembrete das atrocidades sofridas por Sartjie.

Imagens retiradas de: https://www.ivoox.com/pt/escalofriante-5x02-sarah-baartman-la-sordida-audios-mp3_rf_14208642_1.html e
https://www.google.com/url?sa=i&source=images&cd=&ved=2ahUKEwjG17674_ffAhVDXxoKHdSyDeIQjRx6BAgBEAU&url=https%3A%2F%2Fwww.revistaplaneta.com.br%2Fsaartjie-a-venus-hotentote%2F&psig=AOvVaw1xnmVLk0-dw4Enf2lG9bAB&ust=1547915898508753

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