A
criação da "Kissângua da banda" por uma empresa portuguesa tem apenas um nome: Apropriação cultural. Mas o que seria
esse palavrão?
A apropriação cultural é o processo
pelo qual um grupo toma conta de forma indevida de ideias, símbolos, artefactos,
imagens, sons, objectos, história, arte, formas de manifestação da cultura
popular ou outros aspectos da cultura de outro povo. Estes aspectos podem
ser visuais, tais como os estéticos e comportamentais ou não visuais
tais como expressões simbólicas e particulares de uma língua. A apropriação
cultural é em suma, o uso desrespeitoso da cultura alheia.
O
lançamento da “kissângua da banda” aconteceu na 3ª Edição da Feira dos Municípios e Cidades de
Angola (FMCA) de 21 a 24 de Novembro em Benguela e tendo como slogan “Provado
e aprovado por quem sabe”, o que logo foi desmentido por milhares de angolanos
conhecedores da boa kissângua, que decidiram experimentar principalmente para
terem provas daquilo que já sabiam, que a kissângua da banda era uma grande
merda (lixo industrializado).
Um dos sites
da empresa descreve a sua kissângua como “Feita apenas com farinha de
milho, açúcar e água”. Como sabemos a nossa kissângua é muito mais do que isso.
Há ingridientes como o Bundi (não vou revelar o que é por motivos óbvios), que
a tornam particular, além de que não existe uma kissângua, mas vários tipos,
que dependem da interacção de inúmeros elementos tais como a fuba usada, a
pessoa que a prepara, o tempo que leva para assentar, o tipo de panela em que se prepara, o recipiente
em que se guarda, entre outros.
Tive a oportunidade de ler, ouvir
e assistir alguns comentários a respeito, infelizmente, poucos foram tão
sagazes quanto o do youtuber Colua Tremura, que perguntava
como seria se o Anselmo Ralph gravasse um disco inteiro de fado? Foi isso que empresa
portuguesa compal esqueceu-se de perguntar ao ter a estúpida ideia de enlatar a
kissângua, sobretudo considerando a histórica relação de espoliação da cultura angolana levada à cabo desde o tempo da colonização.
Para alguns transformar essa bebida
num produto industrial não é um problema, porque podia ser uma forma de levar
ao mundo algo tipicamente angolano, mas sabemos pela própria forma como o
produto é apresentado pela empresa, que ele é feito para ser consumido em
Angola (não por acaso chama-se Kissângua da banda em
vez the angolan corn juice).
Sabemos que o principal compromisso
das empresas é com o lucro, mas desta vez visou-se transformar um símbolo tão
importante da nossa cultura, mais uma vez (tal com já aconteceu com outros símbolos)
em mercadoria. Ou seja a "kissângua da banda" é de facto como disse Colua Tremura
um grande desrespeito à cultura de um povo, pois trata-se de reduzir um
patrimônio aperfeiçoado ao longo de séculos em um simples e insignificante item
de prateleira, do qual se extrai todo o seu sentido cultural e simbólico. Produzido
sem respeito algum por aqueles que secularmente o têm feito não somente uma
bebida do dia-a-dia, mas a representação de uma forma de viver, de pensar, de
ser, de conceber a realidade e a relação com os outros e com o mundo.
Há aspectos sociais importantes à
volta da kissângua (da verdadeira, é claro) e que são atropelados na versão
industrializada. Como disse antes, ela não é apenas uma bebida, mas parte das
nossas relações. Algo que se materializa em aspectos como o facto de que a sua
confecção é feita em meio familiar e cada uma vai ter o gosto típico da família
que a prepara, assim, se numa ela é azeda, na outra família ela é doce, se numa
tem os catequistas, na outra ela tem apenas uma papinha leve, numa usa-se o
bundi, noutras apenas o açucar, numas toma-se quente, noutras apenas depois de
fria e fermentada. Fazendo com que não exista apenas uma kissângua, mas a da tia
Isilda, da tia Maria, da avó Tchinaculingue, da mana Tchissenda e por aí fora.
Esta e outras características
simbólicas são esvaziadas ao substituirmos toda a variedade de kissânguas
criadas e continuamente aprimoradas pelas nossas famílias, por essa merda a que
chamamos de “kissângua da banda”, como se os gostos fossem de facto todos os
mesmos, quando se trata de uma boa kissângua.
A kissângua que a compal pôs no
mercado é por isso uma agressão à nossa cultura, um uso desrespeitoso de algo que
representa para nós um processo longo e constante de produção de sujeitos que
se querem num mundo muito próprio povoado por referências culturais, que nos
permitam reivindicar uma identidade nossa. A kissângua faz parte dessa identidade
e por isso a tentativa de sua apropriação e uso espúrio é um crime contra o nosso patrimônio
nacional e numa altura em que a França segue o caminho de restituição de bens subtraídos ao longo da história de países africanos, Portugal devia ao menos aprender a respeitar a cultura alheia.
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