domingo, 6 de janeiro de 2019

Kissângua compal é crime de Apropriação Cultural


A criação da "Kissângua da banda" por uma empresa portuguesa tem apenas um nome: Apropriação cultural. Mas o que seria esse palavrão?
A apropriação cultural é o processo pelo qual um grupo toma conta de forma indevida de ideias, símbolos, artefactos, imagens, sons, objectos, história, arte, formas de manifestação da cultura popular ou outros aspectos da cultura de outro povo. Estes aspectos podem ser visuais, tais como os estéticos e comportamentais ou não visuais tais como expressões simbólicas e particulares de uma língua. A apropriação cultural é em suma, o uso desrespeitoso da cultura alheia.
O lançamento da “kissângua da banda” aconteceu na 3ª Edição da Feira dos Municípios e Cidades de Angola (FMCA) de 21 a 24 de Novembro em Benguela e tendo como slogan “Provado e aprovado por quem sabe”, o que logo foi desmentido por milhares de angolanos conhecedores da boa kissângua, que decidiram experimentar principalmente para terem provas daquilo que já sabiam, que a kissângua da banda era uma grande merda (lixo industrializado).
Um dos sites da empresa descreve a sua kissângua como “Feita apenas com farinha de milho, açúcar e água”. Como sabemos a nossa kissângua é muito mais do que isso. Há ingridientes como o Bundi (não vou revelar o que é por motivos óbvios), que a tornam particular, além de que não existe uma kissângua, mas vários tipos, que dependem da interacção de inúmeros elementos tais como a fuba usada, a pessoa que a prepara, o tempo que leva para assentar,  o tipo de panela em que se prepara, o recipiente em que se guarda, entre outros.
Tive a oportunidade de ler, ouvir e assistir alguns comentários a respeito, infelizmente, poucos foram tão sagazes quanto o do  youtuber Colua Tremura, que perguntava como seria se o Anselmo Ralph gravasse  um disco inteiro de fado? Foi isso que empresa portuguesa compal esqueceu-se de perguntar ao ter a estúpida ideia de enlatar a kissângua, sobretudo considerando a histórica relação de espoliação da cultura angolana levada à cabo desde o tempo da colonização.
Para alguns transformar essa bebida num produto industrial não é um problema, porque podia ser uma forma de levar ao mundo algo tipicamente angolano, mas sabemos pela própria forma como o produto é apresentado pela empresa, que ele é feito para ser consumido em Angola (não por acaso chama-se Kissângua da banda em vez the angolan corn juice). 
Sabemos que o principal compromisso das empresas é com o lucro, mas desta vez visou-se transformar um símbolo tão importante da nossa cultura, mais uma vez (tal com já aconteceu com outros símbolos) em mercadoria. Ou seja a "kissângua da banda" é de facto como disse Colua Tremura um grande desrespeito à cultura de um povo, pois trata-se de reduzir um patrimônio aperfeiçoado ao longo de séculos em um simples e insignificante item de prateleira, do qual se extrai todo o seu sentido cultural e simbólico. Produzido sem respeito algum por aqueles que secularmente o têm feito não somente uma bebida do dia-a-dia, mas a representação de uma forma de viver, de pensar, de ser, de conceber a realidade e a relação com os outros e com o mundo.
Há aspectos sociais importantes à volta da kissângua (da verdadeira, é claro) e que são atropelados na versão industrializada. Como disse antes, ela não é apenas uma bebida, mas parte das nossas relações. Algo que se materializa em aspectos como o facto de que a sua confecção é feita em meio familiar e cada uma vai ter o gosto típico da família que a prepara, assim, se numa ela é azeda, na outra família ela é doce, se numa tem os catequistas, na outra ela tem apenas uma papinha leve, numa usa-se o bundi, noutras apenas o açucar, numas toma-se quente, noutras apenas depois de fria e fermentada. Fazendo com que não exista apenas uma kissângua, mas a da tia Isilda, da tia Maria, da avó Tchinaculingue, da mana Tchissenda e por aí fora.
Esta e outras características simbólicas são esvaziadas ao substituirmos toda a variedade de kissânguas criadas e continuamente aprimoradas pelas nossas famílias, por essa merda a que chamamos de “kissângua da banda”, como se os gostos fossem de facto todos os mesmos, quando se trata de uma boa kissângua.
A kissângua que a compal pôs no mercado é por isso uma agressão à nossa cultura, um uso desrespeitoso de algo que representa para nós um processo longo e constante de produção de sujeitos que se querem num mundo muito próprio povoado por referências culturais, que nos permitam reivindicar uma identidade nossa. A kissângua faz parte dessa identidade e por isso a tentativa de sua apropriação e uso espúrio é um crime contra o nosso patrimônio nacional e numa altura em que a França segue o caminho de restituição de bens subtraídos ao longo da história de países africanos, Portugal devia ao menos aprender a respeitar a cultura alheia.


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